1950: México se veste de Cruzeiro-RS na Copa do Mundo

As Coreias se digladiam de norte a sul, a seleção brasileira, embora
estrelada, é encarada com olhos desconfiados, e o país, empapado de
expectativa, respira o promissor ar de uma Copa. Poderia ser o Brasil do
nosso apressado século da internet 4G, do touchscreen e dos smartphones com
modelos sem fim. Poderia, se não fosse um detalhe. Na história incrível que
se desenrolará nessas linhas, o México deu um tempo em sua tradição e
abandonou as três cores que ostenta na bandeira. Em 1950, ao se deixar
colorir de azul e até se lambuzar com churrasco gaúcho, deu a chance de um
clube local fazer a sua própria história. Se faltam títulos e projeção
nacional ao Cruzeiro, de Porto Alegre, lhe sobra orgulho. Afinal, embora
com sotaque espanhol e sem ter conhecido vitória, gravou seu nome na Copa
do Mundo.
– É um fato raro, a única vez numa Copa – atestou Carlos Matzenbacher, que
zela pelos arquivos do clube.
Na verdade, não é a única (esqueceu da França na Copa de 1978, quando usou
camisa em listras verde e branca do clube argentino Kimberley contra a
Hungria). Mas, com certeza, foi a primeira. Naquela tarde de domingo, um 2
de julho, de sol forte, porém de tempo gélido, o México usou o uniforme de
listras verticais em azul e branco do Cruzeiro-RS, diante da Suíça, pela
terceira e última rodada da fase de grupos, pela chave 1. Ambas as seleções
desembarcaram em Porto Alegre já eliminadas e com camisetas vermelhas,
quase grenás – naquela época, o tom preferido do México, hoje adepto do
verde. O jeito, portanto, era improvisar.
De aniversário e dono do rádio: Cruzeiro ganha honra
A resolução foi rápida e costurada por antecipação, num encontro na noite
de sábado, entre dirigentes das equipes e representantes da extinta CBD.
Foi num sorteio, na boa e velha moedinha, que o México levou a sorte
grande… e ficou com o direito de jogar com o seu manto encarnado. A
história jamais esclareceu o motivo, mas o jornal “Correio do Povo”
qualificou como um “gesto simpático” dos mexicanos o fato de ceder a
vantagem e deixar a Suíça atuar com o seu uniforme, também vermelho, porém
com uma vistosa cruz branca no lado esquerdo do peito.
Jogos em Porto Alegre Data Renda
Iugoslávia 4 x 1 México 28/06 320.410 cruzeiros
Suíça 2 x 1 México 02/07 94.700 cruzeiros
Disposto a homenagear um clube local, o México optou pelas cores do
Cruzeiro. Um dos motivos, além do óbvio e necessário contraste com o rival,
estava na geografia. O estádio da Montanha, então casa do Estrelado no
bairro Medianeira (hoje Cemitério Ecumênico João XXIII), ficava bem próximo
ao Eucaliptos. Mais fácil, portanto, de buscar o material de jogo. Outra
possibilidade seria o Grêmio, que morava mais longe, no bairro Moinhos de
Vento. Pior: costumava usar como rouparia o seu setor administrativo,
localizado no efervescente e distante centro da cidade.
Ainda contribuiu para a escolha às vésperas do aniversário do Cruzeiro,
que completaria 37 anos no dia 14 de julho. Na tarde do dia 1º, mexicanos e
cruzeiristas já haviam estreitado laços, inclusive. A delegação estrangeira
havia sido convidada a visitar a Montanha e lá ouviram no rádio a vitória
brasileira sobre a Iugoslávia, os outros rivais do grupo. Um dia antes,
mais festejos. Desta vez, com membros da direção do Inter, que ofereceram
um legítimo churrasco gaúcho aos companheiros de continente, regado a
risadas e brindes, nas dependências do Eucaliptos.
Toda essa simpatia mexicana encontrava reflexo na torcida gaúcha. O México
foi a única seleção a jogar duas vezes em Porto Alegre. Mesmo goleada pela
Iugoslávia por 4 a 1, recebeu a preferência do público na quarta-feira de
28 de junho. Era um dia de semana, em que a prefeitura autorizou meio
expediente dada a importância do evento, que ocorreria às 15h. Um esquema
bem-feito, refletido na boa renda de 320.410 cruzeiros.

Eucaliptos se moderniza, mas público decepciona
O estádio colorado, aliás, passou naquele mês por uma profunda
remodelação. Além de melhorias nos vestiários e na iluminação, as grandes
mudanças ficaram por conta do campo e das arquibancadas. Para atender ao
padrão Fifa, o gramado foi aumentado nos dois sentidos, passando a medir
108 metros de comprimento e 72 metros de largura.

Esporte Clube Cruzeiro
Grande fase nos anos 1940:
– Taça Cidade de Porto Alegre
– Campeonato Extra da Cidade
– Torneio Início de 1943

Em 1941, inaugurou o Estádio da Montanha, no bairro Medianeira
Na década de 1970, construiu o estádio do Estrelão
Anuncia recesso do futebol em 1979 e volta em 1991
Em 2010, passa a erguer a Arena do Cruzeiro, em Cachoeirinha
No mesmo ano, subiu à primeira divisão do Campeonato Gaúcho
Atualmente, segue na elite e, em 14 de julho, completará 100 anos
Em relação às acomodações, ergueu-se um bloco de cimento armado na parte
das gerais, com 80 metros de comprimento e 64 degraus de altura, que,
segundo os cálculos dos técnicos, acomodaria 15 mil espectadores,
aumentando a capacidade total do estádio para 35 mil almas. Em fevereiro de
2012, o cimento que abrigara um Mundial acabou demolido para a construção
de um condomínio residencial – o Inter deixara de jogar por lá em 1969,
quando inaugurou o Beira-Rio.
Na partida entre mexicanos e suíços, no entanto, o estádio passou longe de
sua lotação máxima. Nem cinco mil pessoas compareceram, embora fosse um
domingo de sol – os 94.700 cruzeiros foram a pior renda de toda os 22 jogos
da Copa. A crônica esportiva da época justificou a baixa assistência pelo
caráter nada decisivo do embate. O principal duelo que ocorreria em solo
gaúcho seria entre Uruguai e França, mas os europeus desistiram de
participar reclamando das grandes distâncias que percorreriam entre um jogo
e outro no Brasil.
O empate da Suíça com o Brasil no Pacaembu, no dia 28, animou um pouco os
porto-alegrenses – principalmente os jornalistas -, que ficaram curiosos
sobre a equipe que parou Zizinho e cia, num 2 a 2 catalisador da fúria dos
paulistas, fazendo a Seleção voltar em definitivo ao aconchego do Maracanã.
Embora a expectativa pelos helvéticos e seu futebol sem firulas, a torcida
seguia toda ao lado do México.
Humor e bolero mexicanos embalam torcedora

A história tem replay
O episódio se repetiu na Copa de 1978, na vizinha Argentina.
Diante do impasse de França e Hungria, o Kimberley, pequeno clube de Mar del Plata, ofereceu sua camiseta em listras verticais verde e branco, usada
pelos franceses. Assim como em 1950, esse jogo não valia classificação

O árbitro do 3 a 1 para a França foi o brasileiro Arnaldo Cezar Coelho
E não eram apenas os mexicanos que estavam de roupa nova. A jovem Ana
Aurora Ilha Linck, que se dividia entre os afazeres de casa, o trabalho no
comércio no Centro e a paixão arrebatadora pelo Grêmio, também estreou um
modelito especial para as tardes de Copa do Mundo na Rua Silveiro. Foi uma
dupla economia: para comprar vestido, sapato e bolsa (chapéu não estava
muito na moda, garante) e ainda adquirir o ingresso.
Sócios do Grêmio tinham direito a 100 cadeiras no estádio rival para as
partidas do Mundial. Os bilhetes foram resgatados pelo marido de Ana na
famosa Casa Vitor, na Rua da Praia. Os preços, em cruzeiros: cadeiras, 100;
Geral, 25; sócios do Inter, 25; Família de sócios, 15; colegiais, 10.
– Era caro para a época, mas não como o absurdo de hoje – compara Ana, com
86 anos e cheia de boas memórias sobre aquela tarde.

Confessa que estranhou ver o México de azul e branco, esperava um manto
vermelho. Também admite que poucos na hora se deram conta de que a camiseta
era do Cruzeiro – estava nos Eucaliptos com mais cinco familiares. Eles e
boa parte dos presentes ficaram sabendo depois, via rádio e jornais, num
tempo em que a informação viajava num ritmo bem menos frenético.
Embora desconhecesse os jogadores mexicanos, Ana nutria especial simpatia
pela equipe. Usou o gosto por atores e cantores daquele país para encontrar
um motivo pelo qual torcer. Lembra-se do icônico humorista Cantinflas, dono
de um honroso pedaço da calçada da fama americana, e do romântico Miguel
Aceves Mejía e seus boleros.
O jogo? Ah, claro, 2 a 1

Mas, naquele 2 de julho, valeu a marcha pragmática dos suíços. O México
até contou com mais posse de bola, porém lhe faltou contundência no ataque.
Ao rival, não. Nas poucas vezes em que finalizou, marcou.
Logo aos 12 minutos, Fatton cobrou escanteio, o zagueiro Gutierrez afastou
para a entrada da área e permitiu a Bader encher o pé e abrir o placar. O 2
a 0 chegou no fim do primeiro tempo. Em nova jogada de Fatton, Tamini
recebeu livre na área e chutou forte. Carvallal tocou na bola, mas ela
acabou entrando após resvalar em seu poste direito. A um minuto do término
da partida, o gol de honra saiu de Horacio Casarín, expoente máximo da era
amadora do futebol mexicano.
A imprensa gaúcha eternizou em suas páginas a frustração por ter
testemunhado duas partidas sem visibilidade, com equipes praticamente
eliminadas – Brasil, líder do grupo, classificou-se com tranquilidade. O
Diário de Notícias chegou a comparar, apregoando que “os dois embates não
chegaram sequer aos pés do futebol que praticamos aqui”.
A bronca pode ser gaúcha, mas o orgulho também. No fim, o resultado, as
atuações, o futebol pouco vistoso, a renda aquém do esperado… nada disso
importava. A história escolheu gravar, para sempre, que o Eucaliptos, hoje
apenas pó e recordações, fosse testemunha da primeira vez em que um clube
‘jogou’ uma Copa. Até porque, convenhamos, Mundiais, vaias a nossa seleção
e conflitos entre as Coreias, tudo isso teima em perdurar.

SUÍÇA 2 X 1 MÉXICO – COPA DE 1950
Hug, Neury e Bocquet; Lusendi, Eggimann e Keerner; Tamini, Antenen,
Friedlander, Bader e Falton Carvallal, Gutierrez e Gomez; Roca, Ortiz e
Ochoa; Florez, Naranjo, Casarin, Borbolla e Velásquez
Gols: Bader, aos 12 minutos do primeiro tempo, Tamini, aos 44 do 1º, e
Casarín, aos 44 do 2º
Árbitro: Ivan Eklind, da Suécia – Data: 02 de julho de 1950 – Local:
Estádio dos Eucaliptos, em Porto Alegre

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