A lenda das jogadoras sem sapatos

Numa pequena aldeia peruana da Cordilheira dos Andes, camponesas fazem do futebol o centro da sociedade

Domingo, 2 de julho de 2006. Marco Avilés. Do El Pais. CHURUBAMBA, Peru.

Bendita Mamani pega a bola na sua cozinha e sai coxeando sob a manhã gelada de dezembro. Está lesionada. Ontem caminhou muito atrás de ovelhas que pastavam na montanha e amanheceu com as batatas das pernas doloridas. Ela esfrega uma planta analgésica nas pernas. Não quer perder o jogo-treino desta manhã: Manani é atacante e capitã da equipe de sua aldeia. Tem 40 anos. Hoje ela veste roupa feita por ela mesma, como todas as mulheres de Churubamba, camponesas cuja seleção de futebol feminino ganhou cinco vezes as Olimpíadas da província de Andahuaylilas, cidade a cem quilômetros de Cuzco. Mamni leva saias coloridas. Uma camisa branca, uma jaqueta de lã de alpaca e um sombreiro de abas largas, bordado com fios coloridos e salpicado de lantejoulas. É o traje oficial para jogar futebol, a roupa que usam todos os dias.

São 6h e um megafone retumba na aldeia como um despertador: “senhoras, chegou a areia vinda da cidade. Reunião no campo de futebol. Depois se jogará uma partida”.

Churubamba fica na altitude: a quatro mil metros, os cumes da cordilheira dos andes circunda, uma planície verde. A paisagem da aldeia parece a imitação natural de um grande estádio de futebol. Não há delegacia, prostíbulo nem igreja, mas há duas balizas de madeira na praça-cancha de futebol. Ao redor, 60 casas de barro e uma escola onde se aprende a contar e a ler em quéchua, o idioma que falam mais de sete milhões do Peru. A segunda língua mais falada poderia ser o futebol nesete universo de montanhas onde não há transporte público ou sapatos.

Depois do reparte da aveia, o clássico de Churubamba

A cada 15 dias, a prefeitura de Andahuaylillas, a cidade mais próxima, envia a Churubamba sacos de areia. É algo tão importante que paralisa a aldeia. Os homens param o cultivo para carregar o cereal e as mulheres se reúnem na praça-campo de futebol para dividir o alimeno de acordo com o número de filhos de cada família. Após repetirem, as mulheres fazem duas coisas: discutem assuntos da comunidade e disputam um jogo de futebol.

Hoje há um julgamento. Uma mulher obesa é acusada de comer aveia em demasia. Como todas as decisões, serpa tomada pela comunidade. Se você se casa, a comunidade fornece um terreno. Quando morre, a terra volta a ser da comunidade. Se descobrem que te m uma amante, expulsam-no do povoado.

Segundo a Fifa, 40 milhões de mulheres praticam futebol e, clubes ou associações. Mas nem a Fifa conhece Churubamba nem Manami conhece as estatísticas. Tampouco sabe ler. Enquanto os homens terminam de retirar as bolsas da aveia, ela e outras oito mulheres formam uma equipe e discutem em torno da bola sua lesão.

A história começa em 1982, ano da Copa. A seleção do Peru empatou com a Itália. Os habitantes de Churubamba ouviam os jogos no rádio e alguns desciam para ver os jogos em TVs de cidades vizinhas. Ao voltar para casa, colocara, na praça traves de madeira com a ajuda de padres, que viram no futebol algo que podia reduzir problemas nas aldeias. O alcoolismo, por exemplo. Manani era criança n época e recorda que sua avó, já idosa aprendeu a chutar a vola e bebia menos antes de morrer.

Nos anos 90, o presidente Alberto Fujimori, com a desculpa de reduzir a pobreza na zona rural, fez uma campanha para esterilizar mulheres. Ela chegou a Churubammba. O professor Pilco disse que quando uma mulher chegava ai hospital de Andahuaylillas para tratar uma dor no estômago era atendida, mas ligavam suas trompas. Resultado: naquela década nasceram menos pobres.

Fechamos a escola porque não havia alunos – disse Pilco. Pense no castigo da esterilização num lugar onde as mulheres são criadas para ter filhos e estes são criados para trabalhar a terra. Restou o tempo livre.

Um total de 150 mil mulheres foram esterilizadas no Peru. Mas nem todas são jogadors de futebol nem vivem numa aldeia onde o centro do mundo é um campo, como Churubamba. O certo é que em 1999 a Igreja Católica da região organizou um campeonato com todas as aldeias das montanhas e dos bairros de Andahuaylillas.

“Os cumes dos Andes circundam a planície verde. A paisagem parece a imitação natural de um grande estádio de futebol

-Acreditávamos que o esporte era uma maneira de criar uma pone com estas populações afastadas – diria depois o padre da cidade.

A igreja propôs que os homens jogassem futebol e suas mulheres, vôlei. Elas explicaram que sabiam chutar e surgiu a categoria feminina. Ganharam o campeonato e começou sua lenda.

Soa o apito do árbitro para ordenar que as crianças e os cães deixem o campo. Entram as equipes: nove jogadoras de cada lado, com saias floridas. Um muro separa o campo do resto da aldia. Ali está sentado o marido de Manani, conversando com os maridos das outras jogadoras. Chama-se Encarnación.

Você se incomoda por sua mulher jogar futebol?

Quanta liberdade têm as mulheres da aldeia?

-Elas têm que cumprir suas tarefas como mães. E nós como pais – disse ele. – Depois, todos podemos jogar.

Uma equipe se chama Mirador de Churubamba e tem como capitã Manani. A outra, Club Churubamba, sua líder é Andrea Puma, de uns 20 anis, Desde o ano 2000 é a capitã da seleção do povoado.

Outro apito do árbitro. Uma criança chora na torcida. Sua mãe abandona o meio-campo para consolá-la. Andrea Puma levanta o braço. Está na área rival. O lateral é batido. Manani mata a bola no peito. Sias batatas das pernas doloridas são controladas pela concentração. Tiro de meta. Manani grita de dor: a unha de seu dedão se partiu em duas e sangra. Sai do campo. Sem sua capitã. O Mirador suporta o resto do jogo se, glória. Empate sem gols.

Para festejar seu aniversário, a prefeitura de Andahuaylilas marcou um jogo entre as seleções de Churubamba e a local, composta por artesãs; Estas falam castelhano, foram a escola e usam chuteiras.

No dia do jogo o céu de Andahuylillas amanheceu azul. Casas envolvem uma praça com quatro árvores frondosas e tão velhas quanto a igreja, de 1650, a “Capela Sistina do Peru”. Dentro dela, há paredes repletas de aterradoras pinturas.

Andrea Puma olha o gol adversário e lamenta a má pontaria. O chute saiu alto. O gramado alto e úmido amarra os pés das visitantes, Churubamba está ganhando por 1 a 0;

No desafio com o time da cidade, a vitória em quéchua

O céu escurecido por nuvens negras lança sombras sobre o estádio. Há só 200 curiosos. Na arquibancada principal, o prefeito de Andahuaylillas se preocupa com o mau tempo. Guilhermo Chillihuane nasceu numa aldeia próxima. Quando pequeno, seus pais o enviaram para estudar na cidade, Ali aprendeu espanhol e, com suas economias, estudou engenharia em Cuzco. Muitos em Churubamba e outras aldeias quéchuas sonham com algo assim para os filhos. Enviam-nos para estudar na cidade, mas como a distância é grande e as crianças não podem ir e voltar no mesmo dia, os pais construíram um assentamento no pé das montanhas. Chama-se Noca Churubamba. As crianças vivem ali de segunda a sexta e dormem sobre peles de ovelha.

– Como não tem parentes por perto, perambulam pedindo dinheiro para os turistas – diz Chillinuane. – O esporte é um modo de combater estes problemas, e estamos construindo mais campos de futebol.

O prefeito olha o relógio e vai conversar com o juiz. No gramado, as jogadoras da cidade estão preocupadas com o tempo. Querem empatar. As jogadoras de Churubamba estão cansadas. Final. A chuva começou. A premiação é rápida. As jogadoras de Churubamba, seus filhos e maridos sobem num caminhão de carga. A subida para a aldeia será perigosa e lenta. Levará mais de três horas. No próximo jogo, é possível que as jogadoras de Churubamba vistam as camisas que acabam de ganhar. Serão estas as pontes para unir o mundo das alturas com o da cidade?

Então. Por que não se oferecem chuteiras a elas? A resposta abre um túnel do tempo.

– Porque seus pés são grossos e só cabem em sandálias – diz o prefeito.

Passo a passo, a civilização ocidental é uma educação lenta que começa pelos pés.

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