Brasileiros exageram na raça e duelo contra os ‘Mágicos Magiares’ termina em briga

A seleção brasileira foi para a Copa de 1954 sem Zizinho e Aimoré. Mas teria Zezé Moreira e um punhado de craques que ficariam entre os mais brilhantes já surgidos no país: Castilho, Djalma Santos, Nílton Santos, Bauer, Didi, Julinho. Com coadjuvantes que nada deviam aos que tiveram igual papel em 1950: Pinheiro, Brandãozinho, Pinga, Maurinho e os remanescentes Baltazar e Rodrigues. A comparação com 1950 faz sentido porque uma das metas era fazer tudo rigorosamente diferente da Copa anterior. A mudança do uniforme – calção azul e camisa amarela, escolhidos em concurso promovido pelo “Correio da Manhã” – era a mais visível. Já fora usada nas eliminatórias (quatro vitórias em quatro jogos contra chilenos e paraguaios). Mais visível, porém menos importante.

A decisão de 1950, sempre ela, ainda pesava nas cabeças que pensavam a seleção. Um dos motivos tinha nome curto: raça. Muitos ainda atribuíam o triunfo uruguaio à empolgação patriótica de seus jogadores, àquele mito da camisa celeste com poderes mágicos alimentados pela raça. Raça no sentido de dar tudo, de entregar-se, de sofrer pelo time, de ser capaz de qualquer sacrifício pela vitória. Seriam os uruguaios os únicos no mundo a ter raça? Tanto quanto possível, essa filosofia meio guerreira foi passada aos jogadores. Na Suíça, eles não entrariam em campo sem beijar a bandeira, sem cantar o hino no vestiário, sem ouvir discursos inflamados (num destes, foram instados a “vingar nossos mortos de Pistoia”). Isso na Suíça, onde as seleções europeias desembarcaram sem pensar em guerra.

A quinta Copa do Mundo teve número recorde de 45 seleções inscritas. Duas delas de volta, Alemanha Ocidental e Áustria, agora já separadas. A Alemanha era dirigida por Sepp Herberger, que voltava ao posto depois de ocupá-lo de 1921 a 1925. Herberger e vários de seus jogadores tinham sido membros, menos ou mais atuantes, do Partido Nazista. Mas ninguém ali pensava na guerra, menos ainda nos mais de 400 soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) sepultados no cemitério de Pistoia, na Itália. Os alemães só pensavam em futebol. E não ligavam a mínima para os técnicos, observadores e jornalistas que não os levavam a sério. Outra seleção a chegar à Suíça era mais do que levada a sério. A Hungria, invicta desde 1950, que goleara a Inglaterra em dois amistosos (6 a 3 e 7 a 1, na primeira derrota inglesa em casa, desde que o futebol se oficializara em 1863), era a favorita a ficar com a taça que escapara em Paris, na final com a Itália. Seu poderio – reconhecido em toda a Europa, mas sequer imaginado pelos brasileiros – resultava de um projeto lançado em 1950 pelo ministro dos Esportes, Gusztav Sebes, projeto esse só possível na Hungria comunista da época. Com o apoio do governo e a

ajuda de outros ministérios, em especial o da Defesa, Sebes transformou em instituição militar o Kispet, modesto time de bairro de Peste, parte sul da capital húngara. Seus jogadores, entre eles os jovens Puskas e Bozsik, foram incorporados ao Exército, sendo pagos para jogar futebol (Puskas chegaria ao posto de major). Sebes seguiu convocando os melhores jogadores do país – Kocsis, Czibor, Budai, Lorant e o goleiro Grozsics – tirando-os de clubes como o Vasas, MTK, Ujpest, Ferencvaros. Jogando juntos por quatro anos, pode-se imaginar com que entendimento e conjunto aqueles “soldados” chegaram à Suíça. Sem perder suas últimas 27 partidas, os “Mágicos Magiares”, como eram chamados, chegaram para vencer.

Nessa primeira fase, a seleção brasileira venceu o México (5 a 0) e empatou com a Iugoslávia ( 1 a 1). O terceiro erro de Zezé Moreira, este dividido com toda cúpula da delegação, foi não saber que o empate com os iugoslavos classificava as duas equipes, tornando desnecessário o desgastante desespero com que seus jogadores disputaram uma prorrogação desnecessária. A Hungria cumpriu a primeira fase de forma arrasadora, superando a Coreia do Sul (9 a 0) e a Alemanha Ocidental (8 a 3). Certo de que se classificaria num jogo extra com a Turquia, Herberger poupou vários titulares contra os húngaros e escalou o truculento Werner Liebrich para anular Puskas. O obediente líbero levou as ordens tão ao pé da letra que acertou o tornozelo do capitão do time adversário, e o pôs fora de combate por, no mínimo, dez dias. Com sorte, Puskas jogaria a final.

O regulamento da quinta Copa do Mundo tinha estranha novidade: as oito equipes classificadas na primeira fase se enfrentariam em quartas-de-final segundo emparelhamento estabelecido, não por tabela prévia, mas por sorteio. Em razão disso, o próximo adversário da seleção brasileira poderia ser Alemanha Ocidental, Áustria, Hungria, Inglaterra, novamente a Iugoslávia, Uruguai (reprise de 1950?) ou Suíça. Zezé Moreira e Luís Vinhais foram a Zurique assistir ao sorteio. Deixaram os jogadores no hotel. Sem rádio, sem TV, iam saber do resultado pelo próprio treinador. Já tarde da noite, Zezé chegou. Estava pálido, assustado. Diante do olhar aflito que os jogadores lhe lançaram, resumiu em três palavras: “É a Hungria!”. Mais um erro de Zezé Moreira. Com a informação, dada como quem comunica um desastre, ele transmitia sua apreensão a todo o grupo. O ambiente, os efeitos daquela notícia, a tensão com que os jogadores viveram os três dias até a partida, produziriam versões que vão do sério (noites mal dormidas) ao folclórico (ingestão de pasta de dente ou outras substâncias para, passando mal, não se correr o risco de ser escalado). A realidade é que seleção brasileira mergulhou, por três longos dias, num estado entre o excesso de responsabilidade e o medo da derrota.

Como superar? Com raça, é claro. Beijos na bandeira, canto de hino, discursos, a seleção brasileira entrou em campo “preparada” para enfrentar a Hungria. Zezé Moreira mudou sua linha de frente. Manteve Julinho e, na armação, Didi, mas entregou a Índio, Humberto Tozzi e Maurinho as camisas de titular que tinham sido de Baltazar, Pinga e Rodrigues. A defesa foi alertada quanto ao ímpeto do ataque húngaro, que tentava decidir o jogo em poucos minutos. De fato, era impressionante a frequência com que ele chegava aos 2

a 0 em menos de dez minutos. Às 5 horas da chuvosa tarde de 27 de junho, no Wankdorf Stadium da capital suíça, teve início “a batalha de Berna”. Com gols de Hidegkuti e Kocsis, a Hungria chegou aos temidos 2 a 0. Não aos dez, mas aos sete minutos. Djalma Santos, de pênalti, diminuiu aos 18 minutos. No segundo tempo, Pinheiro cortou uma bola com a mão dentro da área e Lantos, cobrando o pênalti, ampliou aos 15. Os brasileiros protestaram, alguns tentando invadir o campo para agredir o árbitro inglês Arthur Ellis. Mas o jogo prosseguiu, Julinho fez o segundo gol brasileiro aos 25 minutos e Kocsis, o artilheiro da Copa, voltou a marcar aos 43 (4 a 2).

Já então a confusão se instalara. Tendo sido tecnicamente tão aplicada quanto a poderosa adversária, a seleção de Zezé Moreira não percebeu que, com um pouco mais de sorte e muito mais de tranquilidade, poderia conseguir melhor resultado. A raça que lhe foi cobrada não era a que levou Maurinho a cuspir no rosto de Lantos, Humberto a agredir Buzanszky, Nílton Santos a trocar pontapés com Bozsik. Expulsos Humberto, Nílton e Bozsik, o jogo chegou ao fim. Mas não a batalha. Os jogadores brigaram, na saída do campo e nos vestiários. Uns se feriram, outros fugiram. Pinheiro levou pontos na cabeça por causa de uma garrafada que Puskas lhe desferiu. O ponto alto do episódio, ao menos em termos de repercussão, foi a chuteirada com que Zezé Moreira feriu a cabeça do ministro Sebes.

Numa das semifinais, ainda sem Puskas, a Hungria venceu o Uruguai. Foi a primeira derrota da Celeste Olímpica em Copas do Mundo (4 a 2, após prorrogação). Na outra, a Alemanha Ocidental mandou a Áustria para a decisão do terceiro lugar (6 a 1). Nesta, vitória austríaca e o segundo revés uruguaio. A final, em 4 de julho, no mesmo Wankdorf Stadium, tinha tudo para ser a coroação de uma equipe mágica que escrevera o mais notável capítulo da história do esporte húngaro. Não foi por outro motivo que, apesar de ainda sentir dores no tornozelo, Puskas jogou. Como deixar de fora o grande capitão no momento em que Jules Rimet entregaria a taça? Puskas tinha que jogar.

Além do que a Alemanha Ocidental já tinha sido sobrepujada naqueles 8 a 3. O começo da final deu a impressão de ser mera repetição da história, o cumprimento de um ritual. Puskas aos 6 e Czibor aos 8 marcaram os gols que fizeram as esposas, trazidas especialmente de Budapeste, comemorar antecipadamente na tribuna de honra. Mas o primeiro tempo já terminaria 2 a 2, gols de Morlock e Rahn. Este, ponta-direita cuja história acabaria romanceada no filme “O milagre de Berna”, decidiu o título a 6 minutos do fim.

Milagre ou não, os alemães ocidentais eram os campeões do mundo – para surpresa de todos e para o significativo comentário de Jules Rimet. Em seu último gesto como presidente da Fifa, após entregar a taça de ouro ao capitão alemão Fritz Walter, Rimet passou a Puskas a medalha de prata, dizendo: “Espero que troque de metal na próxima vez”. Não houve próxima vez. Com o levante que abalou a Hungria em outubro de 1956, o mágico exército do ministro Sebes se desfez. Puskas e companheiros deixaram o país e foram reforçar o futebol de outras terras. Jules Rimet morreu naquele mesmo outubro, sem imaginar que o próximo campeão seria o Brasil.

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