O jogo que pôs o Brasil no mapa de Futebol

Texto de João Máximo:

Em 18 de junho de 1938 – dois dias depois da Itália vencer o Brasil por 2 a 1, no Velódromo de Mrselha, numa das semifinais da Copa do Mundo – o Diário de Pernambuco  publicou um artigo destinado a entrar para a história. Título: Futebol mulato. Autor: Gilberto Freyre. Naturalmente, este o escrevera antes do jogo, o primeiro entra as duas seleções. Mas a derrota brasileira não invalidava o artigo, no qual falava pela primeira vez do “estilo brasileiro de jogar futebol”, fruto do que o sociólogo chamava de “mulatismo”.

Setenta e cinco anos depois, a tese de Freyre – embora discutida por alguns estudiosos da área acadêmica dedicados a pensar o futebol – continua de pé. As vitórias sobre a Polônia e Tchecoslováquia, em gramados franceses, não só evidenciavam um estilo que “adoça o jogo inventado pelos ingleses e por outros europeus”, como também começavam a dar ao Brasil um lugar de destaque no mundo do futebol.

Mas que papel teve na História o primeiro confronto entre as seleções brasileira e italiana, naquele 18 de junho? De certa forma, a derrota – ocorrida numa tarde em que o Brasil não pôde contar com sua estrela brilhante – o negro Leônidas da Silva – talvez confirmasse o que Freyre defendia.

Eram duas seleções muito diferentes e defendendo tradições ainda mais diferentes. A Itália era a campeã do mundo, a caminho do bi. Tinha uma equipe forte, dirigida por Vittorio Pozzo, homem de confiança de “Il Duce” Benito Mussolini, para quem as vitórias esportivas eram politicamente fundamentais. E tinha craques como Giuseppe Meazza, Silvio Peola, Gino Colaussi, Giovani Ferrari. O Brasil vinha de fracassos nas Copas anteriores, das quais participara com equipes improivsadas (cisão entre cariocas e paulistas, em 1930, e entre profissionais e falsos amadores, em 1934). Era, portanto, a primeira vez de uma seleção realmente representativa, comandada por Ademar Pimenta.

Embora as seleções anteriores contassem com jogadores negros entre seus titulares (Fausto, em 1930 e Leônidas e Waldemar de Brito, em 1934), a que fora à França, era mais marcante quanto a isso. Jaú, Brandão, Argemiro e, especialmente, o mesmo Leônidas, que seria o artilheiro da competição, e Domingos da Guia, considerado o melhor jogador da defesa da América do Sul, foram decerto os que levaram Freyre a escrever o artigo, baseado, apenas, no que diziam os “despachos telegráficos” publicados pelos jornais e as narrações únicas, de Gagliano Neto pelo rádio.

A semifinal de Marselha foi antecedida por inesperadas tensões de bastidor. Uma, a contusão de Leônidas, o maior trunfo brasileiro. Deve ser posta de lado a versão segundo a qual o jogador (denominado, pela imprensa francesa, “Le Diamond” e”L’Homme Élastique”) simulara o problema quando lhe foi negada gratificação extra para que entrasse em campo. Também não se deve considerar a possibilidade de Pimenta ter poupado seu artilheiro para uma decisão contra a Hungria ou Suécia, as outras semifinalistas. O técnico era, de fato, superconfiante, mas não tanto.

O injstiçado otimismo brasileiro seria ressaltado por Pozzo no livro “Campioni Del Mondo” – Quarent’anni de storia Del cálcio italiano”. Lembrando o episódio em que a delegação brasileiro reservou lugares no único vôo que a levaria a Paris para a final, não corcodando com a proposta italiana para que isso só fosse feito após o jogo, Pozzo cita a presunção como pecado imperdoável. Para concluir que, tratando-se de futebol, “no Brasil, o fenômeno é coletivo”.

Mais tensas ficaram as coisas quando, ao saber que Leonindo Fantoni, o Negrinho, seria o substituto de Leônidas, os italianos protestaram. Negrinho nascera em Belo Horizonte, mas, por ser filho de italianos e ter jogado profissionalmente pelo Lázio, de Roma, tinha dupla cidadania. O pior é que, três anos antes, convocado para lutar pela Itália na Abissínia, ele simplesmente desertara, coltando  às pressas para o Brasil. Diante disso, o comando da Seleção Brasileira achou melhor não escalá-lo, restanto a Pimenta deslocar Romeu para o centro do ataque e lançar Luizinho na meia direita. De qualquer modo, foi um jogo duro, difícil, primeiro tempo sem gol, com predominância das defesas sobre os ataques, mesmo com o Brasil plantado num sistema anacrônico, na base do clássico 2-3-5, numa época em que a Itália e toda a Europa já haviam migrado para o WM, criado em 1925 por Hebert Chapman, no Arsenal de Londres. Na verdade, a seleção de Pimenta foi à França desinformada de muitos dados importantes, inclusive regras.

Teria sido por isso que Domingos atingiu Piola, longe da bola, mas dentro da área, achando que falta fora do lance não era marcada. O pênalti, cobrado com firmeza por Meazza, aconeceu aos 15 minutos do segundo, logo depois de Colaussio ter feito o primeiro gol, num descuido de Domingos. Sem Leônidas e com o grande zagueiro Maldia, até que o Brasil fez muito. A três minutos do fim, Romeu diminuiu. Assim, enquanto os brasileiros mudavam seu vôo para Bordeaux, onde, com Leônidas de volta venceriam os suecos por 4 a 2, na decisão do terceiro lugar, os italianos seguiam de trem para Paris, onde, três dias depois, conquistariam o bi contra o húngaros: 4 a 2.

Com seu artigo já escrito, Gilberto Freyre não viu motivo para mudar uma linha sequer do que dissera sobre o “mulatismo” do futebol brasileiro. Pelo contrário, para o resto da vida, teria motivo para se orgulhar de ter “descoberto” o estilo brasileiro de jogar futebol. Senão isso, pelo menos o de ter sido o primeiro a defender o quanto esse estilo deviam, entre tantos, a Leônidas da Silva e Domingos da Guia.

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