O tabu das arquibancadas

Ciro Barros, Giulia Afiune – Pública
24.11.2013

O ano de 2013 foi expressivo para a discussão de dois grandes tabus do
futebol brasileiro: a homossexualidade e a homofobia. Em 9 de abril,
torcedores do Atlético-MG fundaram a Galo Queer, uma página no Facebook que
reúne torcedores alvinegros com uma postura anti-homofobia e anti-sexismo.
“Galo” é o apelido do clube de Minas Gerais e “Queer”, em inglês, significa
gay. Em 15 dias, a página ganhou cinco mil fãs, e hoje conta com mais de
6.600.
O gesto da torcida atleticana motivou outras a fazerem o mesmo. Ao longo
do mês de abril, surgiram páginas semelhantes de torcidas de todo o país:
Cruzeiro, São Paulo, Náutico, Grêmio, Vitória, Bahia, Internacional,
Palmeiras, Corinthians, Flamengo, entre outros. A lista é extensa e mostra
que a discussão da homofobia no futebol, até então, ainda estava dentro do
armário.
“O estádio é um ambiente super homofóbico. Lá não se vê nenhuma
manifestação de diversidade afetiva”, diz o jornalista – e palmeirense –
William de Lucca, colaborador da Folha de S. Paulo em João Pessoa, na
Paraíba. Ele é homossexual assumido e se esforça para prestigiar os jogos
do Palmeiras em cidades próximas, como Recife ou Natal. William já era
militante LGBT e, assim que ouviu falar, aderiu à página anti-homofóbica
“Palmeiras Livre”. “Em 2008, eu morei alguns meses em São Paulo e tinha um
namorado que era palmeirense também. A gente foi até aconselhado por um
amigo dele da torcida organizada a não ter nenhuma demonstração de afeto
dentro do estádio, porque a gente poderia ser agredido”, lembra. “A gente
sempre fica com medo. Em outros ambientes, sou muito seguro quanto a
manifestar meu afeto: ando de mão dada e tal, inclusive na rua, mas acho
que o estádio de futebol é mais hostil do que a própria rua, sabe? A
homofobia é muito mais explícita”, conta.

Surgimento de torcidas gays em 2013 mostra que LGBTS querem ocupar espaço
no esporte (Foto: Reprodução – Facebook – Bambi Tricolor).
“A gente só não tem mais relatos disso porque os homossexuais que torcem
nos estádios não arriscam nenhum tipo de demonstração afetiva”, conclui
William.
Dentro da Palmeiras Livre, assim como nas outras organizações, ainda se
discute quais serão os próximos passos. Os integrantes querem ocupar as
arquibancadas, mas temem agressões físicas, já que as verbais ocorrem
diariamente. “Dia sim e outro também nós recebemos ameaças”, conta a
fotógrafa e analista de mídias sociais Thaís Nozue, também integrante da
Palmeiras Livre. “As pessoas vem ameaçando, dizendo que estão mexendo com o
time errado, que eles vão descobrir quem é, que não sei o quê”. Por
enquanto, a hostilidade está restrita a mensagens no Facebook como: “Vão
morrer”, “Experimenta aparecer na torcida e vocês vão apanhar”, “A Mancha
[maior organizada do Palmeiras] bate em polícia e não vai bater em um monte
de bicha?” – o que não significa que a ameaça venha da Mancha, como explica
Thaís.
Segundo ela, a causa da Palmeiras Livre também foi rechaçada pelas
organizadas alviverdes. “A gente até tentou uma aproximação com as
organizadas, mas elas deram um recado para a gente não se meter com elas.
Às vezes aparecem pessoas se dizendo das organizadas nos ameaçando, mas a
gente não tem como comprovar se são mesmo”, diz.

A homofobia veste verde?
Procurado pela Pública, Marcos Ferreira, o Marquinhos, presidente da
Mancha Alviverde, não quis dar uma entrevista sobre a polêmica da homofobia
e sobre um episódio envolvendo o volante e lateral Richarlyson, hoje no
Atlético-MG e tido como homossexual, apesar de sempre se declarar
heterossexual.
No início de 2012, o Verdão estudava a possibilidade de contratar
Richarlyson. A Mancha Verde convocou um protesto no dia 4 de janeiro, na
frente do Centro de Treinamento (CT) do Palmeiras, zona oeste de São Paulo.
Segundo a torcida o motivo era uma rixa antiga com o jogador, que estava à
beira de um acordo com o Alviverde, mas acabou indo jogar no rival São
Paulo. Porém, uma grande faixa estendida por duas pessoas durante aquele
ato dizia: “A homofobia veste verde”.
Ao telefone, Marquinhos negou repetidas vezes que a Mancha tenha algo a
ver com a faixa – ela seria obra de duas pessoas desconhecidas da
organizada que foram ao protesto. Mas ele disse que “não via nada de
agressivo na faixa”. A Pública também tentou contato com Richarlyson, mas
foi informada pelo seu empresário, Julio Fressato, que ele estava se
recuperando de uma cirurgia.

O selinho de Sheik e o voo das Gaivotas
Na esteira das iniciativas anti-homofóbicas, dois episódios jogaram o
Corinthians no centro da discussão. O atacante Emerson Sheik, herói
corintiano da inédita conquista da Libertadores em 2012, foi vítima de uma
onda de ataques homofóbicos depois da vitória do Corinthians sobre o
Coritiba por 1 a 0, no Pacaembu, no dia 18 de agosto. Para comemorar, Sheik
postou uma foto em seu perfil oficial no Instagram em que aparecia dando um
selinho em um amigo de longa data, o empresário Isaac Azar. “Tem que ser
muito valente para celebrar a amizade sem medo do que os preconceituosos
vão dizer. Tem que ser muito livre para comemorar uma vitória assim, de
cara limpa, com um amigo que te apoia sempre”, escreveu.
No dia seguinte, cinco integrantes da Camisa 12, segunda maior torcida
organizada do Corinthians, foram ao CT do clube protestar contra a atitude
de Sheik, levando três faixas que diziam “Vai beijar a P.Q.P. Aqui é lugar
de homem”, “Respeito é pra quem tem” e “Viado não”.
Dois meses depois, o jornalista e apresentador Luiz Felipe de Campos
Mundin, que assina como Felipeh Campos, anunciou que faltava pouco para
fundar a já polêmica Gaivotas Fiéis, primeira torcida organizada com
conceito gay do Corinthians.

Selinho de Emerson Sheik compartilhado no Instagram desperta reações
agressivas (Reprodução – Instagram – 10Emerson10).
A Pública conseguiu entrevistar um personagem importante em ambos os
episódios, Marco Antônio de Paula Rodrigues, de 34 anos. Conhecido pelo
apelido “Capão”, por ter crescido no Capão Redondo, bairro periférico da
zona sul de São Paulo, ele é presidente da Camisa 12, e foi um dos cinco
que protestaram contra o selinho de Sheik. Ele revela ter sido o autor da
faixa que dizia “Viado não” – a única, dentre as três, que considera
agressiva. “Só essa foi um pouco mais forte, foi um excesso. Eu que risquei
com o spray essa faixa, eu até pensei [que era agressiva], mas depois que
nós já estávamos lá, a gente não podia voltar atrás”, diz. Trajado da
cabeça aos pés com roupas da Camisa 12 (boné, camiseta, agasalho, bermuda e
até meias da torcida), Capão é assertivo, olha nos olhos e tem a voz rouca.
Aceitou falar durante uma hora e meia com a reportagem da Pública na sede
da torcida, no bairro paulistano do Pari, região central, para “dar a
explanação” sobre os dois episódios.
Sobre a iniciativa de Felipeh Campos, Capão vê a nova torcida gay como
puro marketing. “Acredito que ele está pensando mais numa autopromoção do
que numa torcida organizada. Porque para nós, uma torcida organizada começa
como a gente sempre troca ideia nas torcidas: o cara vai para uma caravana,
o cara participa de vários jogos do Corinthians na arquibancada e não na
numerada, a pessoa participa de inúmeras manifestações corintianas que teve
nesses últimos anos, tanto de protesto contra diretoria, contra jogador.
Tem uma caminhada ideológica dentro de uma instituição para você fundar uma
torcida organizada. Torcida organizada não é um comércio, mano”, argumenta.
“Tomei muita borrachada da polícia por aí, passei muita fome na estrada,
nunca fomos pra qualquer lugar e fomos bem recebidos por qualquer órgão que
cuida da organização do jogo no estádio, da segurança pública, nós sempre
fomos maltratados por muitos deles, então a torcida organizada não é
simplesmente chegar e falar: ‘Ó, vou criar uma torcida hoje. Vou criar uma
camisa e vou pro estádio’”.
Para Capão, é “inaceitável” a escolha do nome da torcida gay e a
corruptela do símbolo do Corinthians – no brasão da Gaivotas, além da nova
ave, o símbolo tem como fundo um espelho de maquiagem com direito a pincel
e lápis, e a bandeira do Estado de São Paulo foi pintada com as cores do
arco-íris, ícone do movimento gay.

Símbolos da Gaviões da Fiel e da Gaivotas Fiéis. Para a Gaviões, houve
plágio do jornalista Felipeh Campos (Foto: Reprodução)

“Eu acho que o rapaz lá acaba beirando até o ridículo… Ele está
transmutando as nossas coisas. Tanto pelo nome que ele coloca se referindo
a uma torcida que tem uma puta tradição [Gaviões da Fiel, a maior
organizada do Corinthians, fundada em 1969] quanto do nosso símbolo do
Corinthians, ele colocar um espelho e uns negócios de maquiagem no símbolo…
Numa entrevista que eu vi, perguntaram: ‘Mas por que isso daí?’ E ele: ‘Ah,
porque na verdade o corintiano vai gostar de se pintar na arquibancada’.
Meu, torcida do Coringão é 90 minutos, mano. A gente gosta é de cantar, de
sofrer, de chorar pelo Coringão. Não é de se pintar. Com todo o respeito,
nem as nossas mulheres fazem isso”, afirma Capão, que é contra a existência
de uma torcida gay. “Já digo de pronto que eu não sou favorável a ter uma
torcida gay, porque eu acho que os gays não precisam disso daí pra poder se
achar numa sociedade que já está abrangendo todo mundo”.
Perguntado se existem gays na Camisa 12, Capão não hesita: “Nós não temos
gays na torcida, mano. Pelo menos nunca soubemos, entendeu. Meu, se o cara
tá lá, tá assistindo o jogo. Tudo bem, nós vamos respeitar, mas qualquer
faixa assim, nós somo contra mano. Nós não queremos, de verdade mano, aqui
dentro da 12. Pra nós é sério o estádio, não é só pra brincar”. Capão,
explicando que, se “no meio de um gol os dois de repente se beijarem no
meio da nossa torcida”, seria “ruim”: “O estádio pra nós é um templo”.
O lastro, para Capão – que não se considera homofóbico –, é sempre a
tradição. “O cara ir pro jogo, se for um homem, de shortinho amarradinho,
camisa amarradinha e todo pintado… Pra nós não rola meu, de verdade. Porque
o nosso tradicionalismo, infelizmente, meio ogro, tá ligado, até beirando
homem da caverna não permite isso daí, certo?”. Se a Camisa 12 fosse
homofóbica, exemplifica Capão, “a gente juntava os associados da 12 e ia lá
na passeata gay quebrar todo mundo. No entanto que ninguém tá muito se
manifestando [sobre a Gaivotas Fiéis], certo? Por quê? Porque tudo que a
gente fala, a mídia distorce”.
Sobre o episódio do selinho do Sheik, Capão diz que o problema foi o
atacante ter declarado que o beijo era para comemorar a vitória do
Corinthians. “Quando ele falou que ele estava fazendo aquilo pra comemorar
o jogo ele já transferiu a responsa pro Corinthians”, afirma, explicando
que, depois do episódio, onde quer que o Timão jogue é recebido com gritos
de “beija beija beija” pelos torcedores rivais. “Estávamos ali [no
protesto] representando muitos torcedores. Muitos pediram para que a gente
tomasse a frente, tanto que eu recebi inúmeras congratulações depois”, diz.

Gaviões x Gaivotas
A Gaviões da Fiel, maior organizada do Corinthians, fez uma denúncia de
crime contra a propriedade industrial no 1º DP de Guarulhos, contestando a
sátira à marca da torcida, que é registrada. A torcida reclama que a
proximidade dos nomes e símbolos das duas pode induzir ao erro. “Eu não sei
onde eles enxergaram plágio”, contesta Felipeh Campos, da Gaivotas. “A
minha torcida chama Gaivotas Fiéis, não é gavioa. Já começa que Gaivota é
feminino, não é masculino. Se eu tivesse colocado cílios e salto alto no
gavião, aí eu até acredito que poderia ter sido uma questão de plágio.
Porém eu não estou utilizando as peças do emblema para plagiar alguma
coisa. Entendo isso como uma retaliação homofóbica”, diz.
Felipeh conta que vem sendo ameaçado nas redes sociais, e que foi agredido
verbalmente na semana passada, na Avenida Paulista. “As ameaças são coisas
do tipo ‘Cuidado, eu vou te matar’, ‘Você já tá jurado de morte’, ‘Abre teu
olho’. Então você vê que são atitudes extremamente homofóbicas e
preconceituosas, elas não têm outros motivos”, diz. Sobre a agressão ao
vivo, ele conta que ocorreu na saída de seu trabalho, na sede da TV Gazeta,
na avenida Paulista. “Eu estava com um amigo meu na Paulista e um cara
passou, me esbarrou e começou a me xingar. E eu falei: ‘É comigo que você
tá falando?’ E ele: ‘ Você acha que é com quem? Tá pensando que você e a
sua turminha vai entrar em estádio? Não vai não, mano’. E eu falei: ‘Bom,
vamos conversar, abaixa o tom de voz’. E aí ele continuou a gritar e eu
falei: ‘Ótimo, a polícia está vindo ali, eu vou te incriminar agora em
crime de homofobia e você vai sair daqui para a cadeia’. Aí na hora que ele
viu que a polícia vinha vindo a pé, ele meio que saiu de canto e deu um
pinote”, relata.
Felipeh Campos conta que desde pequeno frequenta estádios. “O futebol nas
décadas de 70 e 80 era uma grande festa. Mas foi crescendo de uma forma tão
grande que deixou de olhar para a questão democrática. Não está escrito na
porta do estádio que só é permitida a entrada de homens, né? Eu acredito
que não só os gays têm que frequentar os estádios, como a mulher, as
crianças, entendeu? O futebol é pra todos”, diz. “Mas é claro que o
conceito da torcida é gay e o meu objetivo maior é inserir o público gay no
estádio de futebol. Eles [as organizadas] monopolizaram os estádios”, diz.
De fato, a divisão do estádio do Pacaembu é um dos argumentos de Capão
para rejeitar a convivência com as Gaivotas. Por determinação da Federação
Paulista de Futebol, as organizadas do Corinthians têm que ocupar as
arquibancadas Verde e Amarela, atrás de um dos gols, nos jogos em que o
clube é mandante. Se ficasse fora desse setor, a Gaivotas estaria violando
a regra. “Mas dentro desse setor, nós já temos seis torcidas: temos a
Gaviões da Fiel, temos a Camisa 12, a Pavilhão 9, a Estopim da Fiel, a
Coringão Chopp e a Fiel Macabra. São seis torcidas que estão ali e todas
elas obtiveram a caminhada. Ninguém chegou do nada não”, argumenta Capão.
Felipeh garante que o objetivo não é “fazer represália com qualquer tipo
de segmento sexual”. Porém, sobre dividir espaço com as outras organizadas,
ele é enfático. “Nem que eu tiver que pedir segurança para o exército. Mas
que a minha torcida vai entrar nos estádios, isso vai, com certeza. Nem que
a gente tenha que chegar de carro-forte, de tanque”. Ele ressalta que a sua
torcida será profissional e que todo o corpo diretivo será remunerado,
diferentemente das outras organizadas.
Procurado pela Pública, Jerry Xavier, diretor da Gaviões da Fiel, disse
que a torcida não se pronuncia sobre esse tema. O Corinthians também
afirmou, via assessoria, que não se manifesta a respeito de torcidas.

Homofobia bate recorde no Brasil
O Brasil, o país do futebol, vem sendo líder no ranking de mortes por
homofobia. Segundo dados do relatório “Assassinatos de Homossexuais (LGBT)
no Brasil”, de 2012, do Grupo Gay da Bahia, o Brasil concentra 44% do total
de assassinatos por motivação homofóbica no mundo. Em 2012, foram
registradas 3.084 denúncias de violações ligadas à homofobia e 310
homicídios por esse motivo. Veja o infográfico abaixo.

Estádio: a terra do macho
“Por ser o estádio um ambiente que tem uma série de permissões nas
relações masculinas – carinhos, afetos, às vezes até mesmo agressões – é
necessário que esse ambiente seja considerado seguro para os homens. Para
garantir essa suposta ‘segurança’, os torcedores precisam reforçar a sua
masculinidade. E uma das coisas que melhor reforça a masculinidade na nossa
cultura é a homofobia. Por isso ela aparece de forma tão gritante”, afirma
o pedagogo e professor da UFRGS, Gustavo Andrada Bandeira, autor da tese de
mestrado “‘Eu canto, bebo e brigo…alegria do meu coração’: currículo de
masculinidades nos estádios de futebol”.
Para Bandeira, esse é o motivo da rejeição às torcidas gays: “Se a torcida
do Corinthians, do Grêmio ou do Internacional for a primeira a levantar uma
bandeira pró ações afirmativas, ela poderá ser chamada de a ‘torcida gay’,
e as torcidas acham que isso é um problema”, diz.
Para Marco Antonio Bettine de Almeida, professor livre docente na
Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH-USP, a
reação é “natural” num espaço que sempre foi dominado pelo masculino. “A
partir do momento que as agendas de visibilidades desses grupos excluídos,
que tiveram seus direitos cerceados, que são espancados, é natural, vendo a
representação que o futebol tem no Brasil, começar toda essa movimentação
de garantir uma representação nesse espaço eminentemente masculino, do
macho, do falo”. Para ele, no entanto, há espaço para negociação entre os
grupos LGBT e as organizadas. “Uma mulher no estádio é aceita, por exemplo,
mas tem que representar os papéis dentro do estádio, que é torcer, xingar,
participar. As torcidas gays ou não gays têm que incorporar um pouco da
história desse espaço do torcer. E conhecer, minimamente, os códigos, senão
vai gerar conflito. Porque o espaço é um espaço sagrado e tem uma carga
cultural muito forte”.
Bandeira discorda. “Se é uma torcida gay, que ela tenha comportamentos
diferentes das torcidas não gays. É sempre complicado quando a gente quer
transgredir as regras de gênero sexual num ambiente muito marcado. Mas me
parece que seria muito mais interessante se eles fizessem algo diferente”.
Foi essa a aposta da Coligay, a primeira torcida homossexual do país, que
em plena ditadura militar conquistou seu espaço dentre os torcedores do
Grêmio (leia Box).
Uma inspiração para o caso brasileiro pode ser a GFSN (Gay Football
Supporters Network, Rede de Torcedores de Futebol Gays, numa tradução
livre). Fundada em 1989, a associação do Reino Unido tem diversas
iniciativas para a inserção do público LGBT no futebol. “Estamos em contato
permanente com muitos clubes para recomendar políticas anti-homofóbicas por
parte deles”, afirma Simon Smith, do departamento de comunicação.
“Ajudamos, por exemplo, a consolidar os Gay Gooners, a torcida LGBT do
Arsenal e conseguimos o apoio formal de representantes do Liverpool e do
Everton para a parada do orgulho LGBT da cidade de Liverpool. Dentro de
campo, organizamos há dez anos campeonatos de futebol voltados ao público
LGBT para a inclusão no esporte”, conta Smith.
A GFSN também registra com precisão britânica a ocorrência de gritos e
cânticos homofóbicos nos estádios – e faz campanha permanente contra eles.
“Na temporada passada, os torcedores do Brighton & Hove Albion FC sofreram
com cantos homofóbicos em 72% dos jogos que disputaram. Nós documentamos
isso e enviamos à FA (Football Association, a CBF inglesa), que ainda não
tomou nenhuma atitude. Mas nós continuamos pressionando”, diz.
No próximo ano, a Copa do Mundo promete ser palco de discussão sobre
homossexualidade – pelo menos em São Paulo, onde mais de 40 mil pessoas são
esperadas para acompanhar a transmissão dos jogos nos telões da Fan Fest,
no Vale do Anhangabaú, centro da cidade. Ali, a prefeitura planeja realizar
uma intervenção para discutir homofobia, com direito a exibição de vídeos
em telas e distribuição de folhetos sobre o tema. Outra ação que está sendo
estudada é transmitir os jogos em telões no Largo do Arouche, um “point”
LGBT da cidade, para esses torcedores.

Um pouco de história: em plena ditadura, nascia a Coligay
A tentativa de formar uma torcida organizada gay não é novidade no futebol
brasileiro. Foi no dia 10 de abril de 1977, quando o Grêmio foi disputar
uma partida pelo Campeonato Gaúcho contra o Santa Cruz (RS), que a novidade
estampava as arquibancadas do estádio Olímpico: cerca de 60 torcedores
homossexuais impressionaram os demais pela festa que faziam. Era a Coligay,
a primeira torcida organizada assumidamente gay do Brasil. A Coligay foi
fundada por Volmar Santos, que hoje é colunista social do jornal O
Nacional, de Passo Fundo (RS).
Gremista fanático, Volmar nunca deixou de frequentar o Olímpico. “Eu ia
aos jogos e achava as torcidas muito quietas, sem animação nenhuma. Foi
quando eu resolvi formar uma torcida organizada. Aí me veio a ideia de
fazer uma torcida gay”, conta. A ideia surgiu quando ele administrava a
boate Coliseu, em Porto Alegre, voltada ao público gay, que não tinha
muitas opções na capital gaúcha. O nome Coligay vem do nome da boate. “Foi
aí que eu mandei fazer uns kaftas, uma espécie de túnica com as cores do
Grêmio, e fomos torcer no estádio. A nossa marca era nunca deixar de
cantar, fazer festa, apoiar sempre o nosso time. E a cada jogo a gente
inventava coisas diferentes”, relembra. A torcida ganhou fama de pé quente:
em 1977, com a Coligay nas arquibancadas, o Grêmio quebrou um jejum de oito
anos sem títulos estaduais.

Usando túnicas com as cores do Grêmio, a Coligay inovava no jeito de
torcer. Foto: Acervo Imortal Tricolor – reprodução.
Naquele longínquo ano de 1977, o mesmo Corinthians chegou a convidar a
torcida gay a prestigiar os seus jogos – e a Coligay esteve presente na
quebra do jejum de 23 anos sem títulos do Timão. “Ganhamos fama de pé
quente e o Vicente Matheus [ex-presidente do Corinthians] nos convidou.
Assistimos o título do Corinthians contra a Ponte Preta de dentro do
Morumbi, vestidos como gremistas”, recorda.
A Coligay durou cerca de seis anos, e acabou em 1983. “A torcida era muito
centrada na figura do Volmar. Quando ele teve que ir para Passo Fundo, não
teve uma liderança que conseguisse dar continuidade”, conta Leo Gerchmann,
repórter especial do jornal Zero Hora, autor de um livro sobre a Coligay
que deve ser lançado nos próximos meses.
Segundo Léo, a torcida enfrentou muita resistência por parte do Grêmio e
da sua organizada Eurico Lara. “Temendo agressões, eu até coloquei o
pessoal pra fazer karatê pra nos defendermos de possíveis ataques”, diz
Volmar. Assim, na ocasião em que foram de fato atacados por torcedores do
Gaúcho, clube de Passo Fundo, durante o Campeonato Gaúcho de 1977, a
Coligay colocou os agressores para correr. “Com o tempo o clube e a própria
torcida adotaram a Coligay. Alguns conselheiros gremistas até deram apoio
financeiro à torcida. Acho uma página bonita da história do Grêmio, de
aceitação da diferença”, diz Gerchmann. “Houve outras experiências de
torcidas gays, coisas efêmeras no Cruzeiro, Fluminense e até no
Internacional, que teve a Inter Flowers. E dois anos depois da Coligay,
teve a Fla-Gay fundada pelo carnavalesco Clóvis Bornay, apesar dele ser
vascaíno”.

Esse texto foi originalmente publicado no site Pública e cedido para
publicação nesse espaço (Lupodéio 2014)

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