Racismo: Hipocrisia tem limite

Não sou advogado, nem psicólogo, duas profissões que admiro muito. Tampouco me formei em Sociologia ou Antropologia, disciplinas fundamentais para entender o Homem, suas reações e idiossincrasias. Muito menos sou autoridade em racismo ou qualquer manifestação menor da alma. É, portanto, com base no senso comum, e nos 30 anos de andanças pelos estádios do mundo, que me atrevi a dar uma palhinha a respeito do episódio de anteontem à noite no Morumbi, e seus desdobramentos rumorosos.

O zagueiro Desábato pisou feio na bola, com sua mal-educada, preconceituosa e tosca. Na hipótese mais suave, levou um baita susto, com a prisão ainda no gramado e o dia passado na prisão. Provavelmente, daqui para frente pensará duas vezes antes de atingir, não a canela do rival, mas sua honra, sua dignidade – qualidades que independem de cor, religião, nacionalidade, sexo.

A praga racista, sobretudo em relação a negros, se dissemina no esporte e reflete sentimentos comuns no dia0a0dia. Atitudes tolas não se limitam ao tom desaforado com que um zagueiro tentou provocar Grafite. Elas desapontam a todo instante, em campos das Américas, na Europa, na Ásia. O mais triste é que, mesmo povos com história rica e cultura, que viveram agras de guerras, que enfrentaram invasões e sofreram sob ditaduras, não estão imunes a reações de bandos de idiotas.

Não passa semana sem que um jogador negro se queixe de agressões de cunho racista, vindas de adversários ou das arquibancadas. Imitar macacos, atirar bananas no gramado, riscar automóveis são atos que mancham a tradição europeia de vanguarda, de democracia. Jornais e tevês se fartam com notícias de incidentes desse tipo na Itália, na Espanha, na Alemanha, em Portugal, para ficar em nações que têm alta concentração de imigrantes, e não necessariamente afros ou descendentes.

O que torna mais indigna a onda de preconceito é o fato de vir de países com larga vocação para a emigração. Quantos povos que nos são caros viveram diásporas, em seu próprio continente, ou saíram para “fazer a América” no final do século XIX e em boa parte do século XX? Quantos mais recentemente descobriram a Oceania como paraíso, sem contar as incursões colonialistas na África e na América Latina? Ou seja, fincaram raízes fora de casa, aculturaram à força tribos e populações indígenas e hoje assumem ares de desdém ou superioridade para aquela fase de sua história. Veem antigos colonizados ou descendentes de seus emigrantes como estorvo, porque são a testemunha de tempos de vacas magras, de pobreza ou de brutalidade que envergonham a riqueza atual.

Por isso, fazem bem jogadores que passa, a denunciar atos indignos, e está correto Grafite de levar a questão adiante. Ah, há quem tema incidente diplomático! Rematada besteira. Não se trata de cutucar gratuitamente vizinho com origens, virtudes e problemas semelhantes aos nossos. Não se deve generalizar ou abrir “guerra” no Mercosul. Basta, as batalhas muitas vezes vergonhosas, que brasileiros e argentinos travam dentro de campo. Jogador, treinador e dirigente de futebol precisam entender que não tem imunidade para fazer o que bem entenderem em qualquer parte do mundo.

Também é conversa pra boi dormir a afirmação de que Desábato se dirigiu a Grafite em tom carinhoso. Hipocrisia tem limite. A ofensa não está em chamar alguém de “negro”, mas o tom usado. Sou filho de italianos de italianos e nunca me incomodei na brincadeira, me “xingaram” de “carcamano”. Mas se disserem que sou carcamano no sentido original (de negociantes italianos que supostamente roubavam no peso das mercadorias), aí o papo seria outro.

Já que falei em hipocrisia, não custa nada lembrar que ofensas iguais às de Desábato ocorrem a todo momento pelo Brasil afora, e entre patrícios. Até hoje, nenhum jogador ofendido levou o caso adiante. Por quê? Medo de represália? Temor de ficar mal com a categoria? Receio de que se fechem portas? Conformismo? Se é para combater o racismo vamos começar entre nós mesmos.

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