Um festival de surpresas do começo ao fim

Da escolha de Feola às trocas durante o Mundial, a receita para o primeiro título.

Muito citado, muito discutido, muito exaltado depois de 1958, mas pouco conhecido, o “Plano Paulo Machado de Carvalho” entrou para a história. Em princípio, o projeto foi repassado ao então jornalista Paulo Planet Buarque (em 1954, ele dera uma rasteira no guarda suíço que o impedira de agredir o árbitro de Brasil x Hungria), ao comentarista Ary Silva, ao espexialista em arbitragem Flávio Iazetti e ao Vicente Feola, que passara o ano de 1957 observando o treinador húngaro Bella Gutman levar i São Paulo ao título de campeão paulista. Em resumo, nomes da confiança do empresário.

Não mais que dois pontos merecem ser ressaltados no texto: a divisão de tarefas, dentro do que ficaria conhecido como comissão técnica (tirando do treinador a autoridade que tivera até então) e a preocupação com a saúde e o laudo psicológico dos jogadores. Mesmo sem referência ao racismo e a outros episódios da excursão, o plano era clramente inspirado no relatório. Tinha tom de aconselhamento, de matérias a seguir para se chegar a uma seleção forte competitiva, campeã. Paulo Planet Buarque, em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, resumiu bem o espírito que guiaria a comissão técnica na hora de convocar e escalar seus jogadores: “Entre o homem e o craque, prefere-se o homem”.

TÉCNICO SEM EXPERIÊNCIA

Uma vez empossado, mais do que aceitar, sem reparos, o plano, João Havelange entregou ao empresário o futebol da CBD e a chefia da delegação brasileira à Suécia. Então, quando se especulava sobre quem seria o treinador, uns esperando a confirmação de Flávio Costa, outros a volta de Zezé Moreira, outros mais a contratação do paraguaio Fleitas Solich (“El Brujo” que dera ao Flamengo o tricampeonato cariocam nas que, por ser estrangeiro, tinha ferozes opositores), Paulo Machado de Carvalho optou pelo eterno substituto de treinadores (Ramón Plantero, Alberto Zarzur, Leônidas da Silva. Jim Lopes, Armando Renganeschi) do seu clube e o encaminhou, convicto, a João Havelange.

A experiência de Feola em seleção brasileira era quase nenhuma. Atuara como preparador físico de Flávio Costa durante a Copa do Mundo de 1950 (com toda dificuldade imposta pelo peso) e dirigira a turma paulista num jogo contra os chilenos, em 1955, enquanto Flávio cuidava da carioca. A convicção de Paulo Machado de Carvalho estava em conhecer seu aplicado colaborador e, também, em saber que, dessa vez, o papel de treinador de

seleção não incluía o excesso de autoridade que marcava os mandatos de seus precedentes.

Trinta e três jogadores foram convocados. Como de hábito, com críticas pela omissão de alguns nomes, daqueles que “não poderiam ficar de fora”. Eram os casos de Julinho Botelho e Evaristo Macedo, cujas ausências se justificavam por atuarem respectivamente, na Fiorentina italiana e no Barcelona. Quando foram cortados nos últimos dos onze excedentes, reclamou-se porque, entre eles, estavam Almir, o Pernambuquinho, e Canhoteiro, na época, longe, o melhor ponta-esquerda do Brasil. Os motivos seriam a irascibilidade do primeiro e o temperamento boêmio do segundo. Ao menos ali, na escolha entre o craque e o homem seguia-se o plano.

Imposta ou não, a escalação de Pelé e Garrincha devolveu à seleção a genialidade necessária para ganhar a Copa de 58

Foram quatro amistosos no Brasil e dois na Itália, antes do desembarque para a Suécia. Pelas diferentes formações adotadas neles, conclui-se que o time definido por Feola era mesm o que estrearia contra a Áustria, em 8 de junho: Gilmar, De Sordi, Bellini, Orlando e Nílton Santos; Dino Sani e Didi; Jorl, Mazzola, Dida e Zagallo. Muito se falou sobre ser um time tão branco quanto possível, pois o único negro dele, Didi, tinha como reserva outro negro, Moacir. Uma escalação ditada pelo relatório de 1956 ou simples coincidência?

Para nos atermos aos fatos, há detalhes técnicos chamando a atenção naquele time. Nos seis amistosos, Feola só o utilizara em dois, o último contra a Fiorentina. Foi quando, a seleção brasileira, vencendo por 3 a 0, Garrincha recebeu uma bola, saiu driblando e, depois de passar pelo goleiro Giuliani Sarti voltou para driblar um beque que corria desesperado em sua direção, para só depois fazer o gol. Feola perdeu a paciência. Viu ali que João Carvalhares, o psicólogo contratado pela CBD (verdade, a comissão técnica tinha agora um especialista para avaliar cientificamente mentes e nervos dos craques brasileiros), estava certo em atestar a imaturidade de Garrincha, única explicação para tanta irresponsabilidade. Portanto, que fosse o reserva de Joel.

Outro detalhe: Pelé como reserva de Dida. Feola e toda a comissão técnica diriam que depois que Pelé só não foi o titular, desde o começo, por causa de uma contusão. Errado. Antes de se machucar num jogo-treino com o Cotinthians, a três dias do embarque, ele já não tinha a preferência do treinador. O titular de Feola, até com certa justiça, era Dida, excelente atacante do Flamengo, ídolo de sua torcida. Quando chegou Uddevalla, Pelé já estava praticamente liberado pelo médico Hilton Gosling. Portanto, que fosse o reserva de Dida.

Terceiro detalhe: Vavá reserva de Mazzola. No casom tudo bem. O atacante do Palmeiras, José Altafani – cujo apelido devia-se à semelhança com o meia italiano que estivera em São Paulo com o Torino, um ano antes de morrer com o time no desastre aéreo em Superga – estava em forma. E na mira do Milan, que o tinha visto na recente vitória da seleção brasileira sobre o rival Internazionale, em Milão. Vavá, então no Vasco, também estava em forma, mas por enquanto, que fosse reserva de Mazzola.

As duas primeiras partidas da fase de grupos (3 a 0 sobre a Áustria e 0 a 0 com a Inglaterra) não deixaram a comissão técnica satisfeita. Pelo contrário, preocupava-a a decepcionante atuação de Dida na estreia, quando ele não foi o ponta-de0lança ágil, esperto, ousado e desconcertante de outras ocasiões. Por isso, o substituíram por Vavá no segundo jogo. Neste, quem fracassou foi o ponta-de-lança ágil, esperto, ousado e desconcertante de outras ocasiões. Por isso, o substituíram por Vavá no segundo jogo. Neste, quem fracasou foi Mazzola, a quem o capitão Bellini chamou às falas quando o viu descontrolado depois de perder um gol. Até que ponto as liras oferecidas pelo Milan teriam minado seus nervos? Foi só então que se viu que a vez era de Pelé, um garoto de 17 anos.

Duas outras modificações seriam feitas para o jogo decisivo com a União Soviética. Uma, a substituição de Dino Sani, com estiramento muscular, por Zito, que entrou para ficar. Outra, Garrincha no lugar de Joel. Esta, só confirmada na véspera, para espanto de quem sabia do quanto Feola não gostava de Garrincha. Por que, afinal, o treinador correria o risco de lançar o imaturo, o irresponsável, justamente numa partida decisiva?

Por isso, e pela mudança que provocou no rumo dos fatos, a escalação de Garrincha acabou se tornando um dos mais notáveis capítulos dos 100 anos de história que a seleção brasileira completa neste 2014. Sobre quem convenceu Feola de que Garrincha era um fenômeno – e que os fenomenos no futebol, para serem entendidos, exigem mentes mais abertas que científicas – há incontáveis versões. Há as que nomeiam Bellini, ou Nílton Santos, ou Didi, ou o preparador físico Paulo Amaralm ou a mais de um desses juntos, como autor intelectual. Mas a menos citada é a mais lógica: o próprio Paulo Machado de Carvalho, com direitos e obrigações de chefe, foi ao treinador com o nome de Garrincha já efetivado.

AS JOGADAS DE DIDI

Mas quem convenceu Paulo Machado de Carvalho a convencer Feola? Nps dias seguintes ao empate com a Inglaterra, o chefe da delegação notou que Didi andava pelos cantos, calado, visivelmente preocupado. Como Didi era p jogador que ele mais admirava e respeitava, aquele que parecia determinar o ritmo de toda a seleção, o dirigente chamou-o para uma conversa franca. Foi

quando Didi falou-lhe da necessidade de mudar o ataque contra os soviéticos. Com Pelé, sim, mas, antes de mais nada com Garrincha.

O Brasil começou a ganhar a Copa do Mundo, se não naquele momento, nos dois primeiros minutos de jogo em que Garrincha desmontou com seus dribles a compacta defesa soviética. Foram dois, três ou mais a tentar marcá-lo, cabendo a Vavá os dois gols da vitória. A seleção brasileira prosseguiu vencendo, 1 a 0 sobre Gales, 5 a 2 sobre a França, outros 5 a 2 sobre a Suécia na final. Nesta, como se para arquivar relatórios, o negro Djalma Santos entrou no lugar do Branco De Sordi e sagrou-se campeão com honras de melhor lateral direito do campeonato. Nos últimos três jogos, o gênio Pelé despontou. Fez cinco gols, driblou, participou de lances sensacionais, foi decisivo.

Vavá também, pelo ímpeto, pelo oportunismo, pelos momentos precisos em que marcou os gols. Didi, o mestre, o maestro, foi eleito com justiça o melhor jogador da sexta Copa do Mundo. Mister ou Monsieur Football, como o chamaram, brilhou. Toda a seleção brasileira – até hoje considerada por muitos anos a melhor já enviada a uma competição internacional – teve desempenho exemplar. Mas será exagero também afirmar o que veio mesmo de Garrincha, de seus dribles, de sua capacidade de surpreender, o espírito vencedor que animou aquele time?

Para o futebol brasileiro e por vários motivos, a Copa de 1958 permanece como a mais importante. Ainda se falou muito no plano, promoveu-se Paulo Machado a “Marechal da Vitória”, louvou-se toda a delegação do chefe ao dentista, do supervisor ao cozinheiro. Perdoou-se o psicólogo e deram-se boas vindas a Havelange. Mas a importância deveu-se a ter sido a primeira ganha; por ter sido a que a seleção chegou mais desacreditada (de uma forma ou de outra, muitos brasileiros pensam como aquele relatório); por ter vindo em sequência a dois fracassos, o do Maracanã e o de Berna; e por ter libertado o apaixonado torcedor brasileiro da incômoda impressão de que o sonho de ser campeão do mundo jamais se realizaria.

Novidade. Bellini e o inédito gesto de erguer a taça

Faixas. A seleção formada após a conquista na Suécia.

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