Gilberto Freyre – Uma questão de Identidade

Sabine Bartlewski

Este ano foi decretado oficialmente pelo Governo brasileiro o Ano Nacional Gilberto Freyre, coincidindo 500 anos do Brasil e 100 anos de nascimento do mais polêmico antropólogo brasileiro. Entre as muitas homenagens, estão as reedições das obras de Freyre por diversas editoras e o lançamento de um selo comemorativo pelo Correio.

O que é o Brasil? O que é ser bra­sileiro? A questão da identi­dade brasileira motivou toda a obra do escritor pernambucano, nascido no Recife em 15 de marco de 1900. Gil­berto Freyre foi educado numa tradicio­nal família patriarcal brasileira, foi alfa­betizado em inglês e estudou latim com seu pai, que era educador e juiz de di­reito. Na Universidade de Columbia em Nova York, Freyre estudou Ciências Sociais e conheceu o antropólogo ale­mão radicado nos EUA, Franz Boas, com quem aprendeu a diferenciar os conceitos de raça e cultura. Esta foi a chave para decifrar a história e as raízes do seu país.

Em Casa Grande & Senzala — a história da sociedade patriarcal no Brasil, de 1933, seu primeiro e mais importante livro, Freyre defende a miscigenação de índios, portugueses e negros, como o tesouro da diversidade cultural e razão da sensualidade brasileira. A valori­zação da nação mestiça, nascida no con­texto histórico e econômico da mono­cultura, do latifúndio e da escravidão, derrubava o modelo do nacionalismo europeu e a ideia de desenvolvimento, pois a mistura das raças era vista, até então, como fator de subdesenvolvi­mento. O livro causou espanto com suas revelações sobre o cotidiano da família patriarcal, ressaltando a sexualidade, culinária, educação, hábitos e costumes na formação da cultura. Freyre foi pre­cursor da história do cotidiano, pois an­tes conhecia-se a história do Brasil apenas através das datas, batalhas, tra­tados, etc. Ele empregava o método proustiano de investigação científica, buscando na família as informações básicas sobre a sociedade brasileira e pernambucana.

Freyre escreveu outros dois livros que formam com o primeiro uma trilo­gia e representam as obras mais significativas do autor. Sobrados e Mucambos, — mostrando o desenvolvimento do ur­bano e Ordem e Progresso — sobre as relações de poder na sociedade brasi­leira, elaborado a partir de uma pesquisa de questionário, metodologia inédita na época. Mas Gilberto Freyre não era apenas escritor, antropólogo, sociólogo e historiador, mas também poeta, pintor e político — além do folclórico inventor do conhaque de pitanga.

Um anarquista construtivo

Extremamente vaidoso e contraditório, Gilberto Freyre foi criticado pela direita e pela esquerda; por um lado era defen­sor da hibridação cultural e muito libe­ral para a moral da época, por outro lado, assumia posições conservadoras. Era amigo e afilhado político do gover­nador de Pernambuco, Estácio Coimbra, com quem, inclusive, partiu para o exí­lio, quando houve a revolução de 1930. De volta ao país, chegou a ser preso pela ditadura do Estado Novo, acusado de comunista, quando organizou o I Con­gresso Afro-brasileiro no Recife em 1934. Em 1946, foi eleito deputado con­stituinte pela UDN com apoio dos estu­dantes. Depois, Freyre apoiou o regime salazarista, realizando suas viagens de África e Ásia a convite da ditadura portuguesa. Quando foi instalada a dita­dura no Brasil em 1964, ele também foi conivente.

“Eu não sou, realmente, nenhum desses extremos (comunista ou reacio­nário). Não porque os considere deson­rosos, mas porque não correspondem a minha tendência de harmonizar con­trários.” — declarou Freyre certa vez. No final da vida ele se considerava um ‘anarquista construtivo’. Na verdade, Gilberto Freyre sempre se manteve pró­ximo do poder. Com apoio do governo Dutra, ele fundou o Instituto Joaquim Nabuco, hoje fundação e centro de referência da cultura nordestina. Getúlio Vargas, no seu segundo governo, che­gou a cogitá-lo puma pasta da Reforma Agrária e Castello Branco convidou Freyre a assumir o Ministério da Educação, mas ele não aceitou, — o que almejava era o governo de Pernambuco.

Uma vez perguntaram a Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala é um livro sobre a sociedade brasileira do ponto de vista da casa grande, quando é que vai ter outro do ponto de vista da senzala?” e ele respondeu, “quando ti­ver outro gênio igual a mim.” — estórias do seu narcisismo. Mas a critica da esquerda ao Casa Grande & Senzala é, justamente, que o livro não fala da ‘luta de classes’, do aspecto econômico do desenvolvimento da sociedade brasi­leira. Suas respostas também ficaram famosas: “eu sou plurimetodológico, a minha análise é dentro do homem, não é fora do homem…”, ou “esses marxi­stas mais marxistas do que Marx…”, sendo que o crítico marxista a quem se referia era o Prof. Fernando Henrique Cardoso, da Universidade de São Paulo.

Seus conflitos com a intelectuali­dade, principalmente a paulista, vinham desde o movimento modernista de 1922. Gilberto Freyre fazia a crítica de que a Semana de Arte Moderna valori­zou a cultura brasileira mas, principal­mente, a vanguarda europeia, sendo que considerava apenas a arte que estava acontecendo na França. O modernismo no Brasil ignorou completamente um dos movimentos mais importantes da arte contemporânea, o expressionismo alemão e também o imagismo inglês. Enquanto Freyre foi amigo de Manuel Bandeira, Villa-Lobos e Sérgio Buarque de Hollanda, ele não se dava com Mário de Andrade nem com Oswald de An­drade que, certa vez, quando mataram o lendário cangaceiro Lampião, comen­tou, “o que é que adianta, se Gilberto Freyre continua vivo!”

Gilberto Freyre na Alemanha

Sobre a sua passagem pela Alemanha na década de 20, o Prof. Enrique Larreta, diretor do Instituto de Pluralismo Cultural e pesquisador da obra feyriana, conta que Gilberto Freyre ficou muito impressionado, especialmente com a cidade de Nuremberg, — sobre a qual publicou alguns ensaios —, não só pela arquitetura, mas por ser a cidade dos brinquedos. Freyre dava muita atenção à infância e queria escrever a ‘história do brinquedo’ e a ‘história do menino’, o que não realizou. Em Berlim, o expressionismo alemão foi o que mais o mar­cou, mas ele também cita suas obser­vações sobre a prostituição masculina na cidade pós-guerra. Além da forte influência de F. Boas, os autores ale­mães importantes para Freyre foram Nietzsche e o sociólogo Georg Simmel. Com Thomas Mann ele manteve estrei­ta correspondência e se empenhou pessoalmente para viabilizar a visita do escritor alemão ao país de sua mãe brasileira, o que acabou não se reali­zando. Na década de 60 Freyre escreveu Nós e a Europa Germânica, onde ana­lisa a influência da colonização alemã no Brasil.

Pensando sobre a relação de Freyre com a Alemanha, é importante lembrar que CasaGrande & Senzala foi lançado no Brasil no ano em que Hitler ascendia ao poder num impulso oposto, baseado na ideia da raça pura. Depois da 2ª guerra, foram as ideias de F. Boas, o mestre de Freyre, que nortearam a posi­ção mundial oficial da UNESCO sobre o respeito entre as raças. Casa Grande & Senzala só foi editado na Alemanha em 1965 com o título Herrenhaus und Sklavenhütte — em Bild der brasilia – nischen Gesellschaft, traduzido por Ludwig Graf von Schönfeldt, Kiepen-heuer & Witsch, Berlim. Pouco depois, Freyre foi homenageado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universi­dade de Münster. Em 1982 foi lançado pela mesma editora e tradutor, o seg­undo livro da trilogia, com o título Das Land in der Stadt— die Entwicklung der urbanen Gesellschaft in Brasilien.

A Fundação Gilberto Freyre

Sempre valorizando o regionalismo, Freyre consagrou o conceito de ‘nord­este’. Em 1987, pouco antes de morrer, ele criou a Fundação Gilberto Freyre com o objetivo de promover a cultura brasileira e nordestina. O famoso solar de Apipucos em Recife, casa em que viveu desde a década de 40 com sua esposa e fiel companheira, foi trans­formada no Museu Magdalena e Gil­berto Freyre e seus jardins num sítio ecológico. Poucos sabem que Freyre foi um dos primeiros brasileiros a estudar a relação do homem com a natureza e a utilizar a palavra ecologia no Brasil.

Entre as muitas homenagens deste ano, a Fundação Gilberto Freyre organi­zou o Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos de 20 a 24 de março, onde se encontraram sociólogos, antropólogos, escritores e políticos de vários países para revisitar toda a obra freyriana. Da Alemanha, participou o cientista social H. A. Steger, da Univer­sidade de Erlangen, pioneiro no inter­câmbio cultural entre América Latina e Alemanha, que chamou Freyre de “o motor espiritual das relações teuto-brasileiras”. O vice-presidente do Brasil, Marco Maciel, comparou em seu dis­curso a importância de Gilberto Freyre para o Brasil com Max Weber para a Alemanha. Entre as muitas mesas re­dondas, cada uma sobre um livro do autor, a socióloga Barbara Freitag, que atua na Universidade Livre de Berlim e na Universidade de Brasília, analisou o livro pouco conhecido e um dos últi­mos de Feyre, Insurgências e Ressurgências, por fim convocando a todos para “convencer-se — na prática reflexi­va — que a obra e as categorias de Gil­berto Freyre continuam vivas e atuantes, como nos tempos de sua criação.”

Mesmo que o mito da democracia ra­cial não seja uma realidade, nem seja a identidade nacional solução para as injustiças sociais, — a obra de Gilberto Freyre certamente tem uma contri­buição universal para a atualidade, à medida que faz refletir sobre as relações entre as raças, causa de tantas guerras e graves conflitos ainda hoje. Além disto, nos lembra com seu trabalho e atuação, a importância de se valorizar as culturas locais, regionais e nacionais dos povos do mundo, principalmente quando a hegemonia americana e a globalização são a referência cultural preponderante.

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“Fundação Joaquim Nabuco” www.fundaj.gov.br

“Fundação Gilberto Freyre” www.fgforg. br

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