Quando o Futebol era só Paixão

ESTADO DE SÃO PAULO – 10 DE JULHO DE 2005 – ANÉLIO BARRETO

  QUANDO O FUTEBOL ERA SÓ PAIXÃO
No Brasil, vivíamos os tempos de transição no futebol, do amador para o profissional. Mas algo já existia: a rivalidade Rio-São Paulo
  A jogada acontecia em Montevidéu, Uruguai, entre Brasil e Iugoslávia, e chegava aqui duas horas depois, para a torcida que se concentrava em frente à redação do jornal A Noite, no Rio de Janeiro, onde sua descrição, via telegramas, era reproduzida em um quadro negro.
  Telegramas também publicados no dia seguinte , 15 de julho de 1930, numa terça feira, pelo jornal O Estado de S. paulo:
   Montevidéu,14 (A.) – 14 e 45 minutos. Os brasileiros e yugo-slavos iniciam o clássico bate-bola. O capitão do quadro brasileiro offereceu um ramo de flores ao seu colega yugo-slavo, trocando-se, após, saudações em frente à tribuna de honra. A sorte foi favoravel ao Brasil, que escolheu o campo contra o vento.
  Os yugo-slavos deram sahida precisamente ás 15 horas e 7 minutos. No momento em que telegraphamos, os slavos jogam muito bem.
   Na primeira das Copas do Mundo, há exatos 75 anos, o Brasil foi o 6º colocado. Chegou ao Uruguai como um dos favoritos, mas com o time praticamente pela metade. A rivalidade entre cariocas e paulistas resultou em uma seleção formada por jogadores do Rio, em meio aos quais haviam apenas um paulista, Araken Patuska, o genial atacante santista, que pôde viajar por um motivo bastante simples : estava sem time naquele momento – os demais jogadores dos clubes de São Paulo não obtiveram permissão de seus dirigentes. Entre eles, nada menos do que Feitiço e Friedenreich, os dois maiores astros do país naquele momento. No jogo de estréia os brasileiros perderam de 2a1, em seguida golearam a Bolívia por 4 a 0, mas ficaram fora da competição porque a Iugoslávia  também venceu a Bolívia, e até pelos mesmos 4a0.
    Em São Paulo, onde, como no Rio, uma multidão acompanhava o jogo contra a Iugoslávia, e também diante de um jornal, A Gazeta, houve grande comemoração na derrota frente à Iugoslávia, que praticamente eliminou o Brasil, como se veria depois. Vingando-se da desfaçatez carioca- ignorar os paulitas, imagine! um grupo improvisou um enterro simbólico da CBD (Confederação Brasileira de Desportos, com sede no rio) e a Apea (Associação Paulista de Esportes Atléticos , de São Paulo), foi pelo fato de que a CBD não colocou um único paulista na comissão técnica. Diante disso a Apea, alegando que  não poderia liberar jogadores em cima da hora porque eram todos pais de família e não poderiam ausentar-se de suas casas assim, inesperadamente – vetou a viajem de seus craques.
  A exceção foi aquele rapaz conhecido da roda boêmia de Santos, ele com seu terno de linho, a bengala e a palheta, e que, com rodopios implacáveis, esmerilhava o charleston nos salões de baile da cidade. Como, era a pergunta que surgiu quando ele tentou o futebol, com essa delicadeza toda, o Araken Patuska poderia adaptar-se à dura vida de jogador enfrentar aqueles beques rombudos de grandes e duras chuteiras que rasgavam os gramados locais? Ele respondeu em campo: vestiu o uniforme do Santos e partiu para a briga.Teve uma chance em amistoso contra o Paulista, em Jundiaí, quando ponta-esquerda do time, Marcos, ficou doente. O diretor de futebol olhou em volta e viu Araken – afinal, além dos 11 que iam jogar, a delegação eram eles. E aquele garoto de 14 anos, alto, magro e ágil, enfiou 3 gols – ou 4, há dúvidas, porque lá se vão quase 80 anos – no empate entre as duas equipes, 4 a 4. E aí…
  ´´Sua finta é um trecho bailado; sua negraça, um passo de samba estilizado; seu controle de bola, um ato de ilusionista perfeito; sua estacada desnorteia defesas“, escreveria sobre ele o jornalista Henrique Ferreira em Manchete, muito tempo depois.
   Por 37 anos o recorde de gols em um só jogo foi dele, 7 pelo Santos contra o Ipiranga, 1927, vitória santista por 12 a 1. Quando, em 1964, Pelé fez 8 contra o Botafogo de Ribeirão Preto, Vila Belmiro, na vitória por 11 a 0, Araken escreveu uma carta aberta a ele, passando-lhe o recorde.
  Pois Araken Patuska,meia esquerda do Santos, e depois do Paulistano, do Flamengo e do São paulo, foi o único paulistano naquela seleção de 30 – brigado com a direção do Santos, e tentando transferir-se pro São Paulo, ele não estava preso a compromissos, e foi com a seleção. Apareceu em um único telegrama, entre os publicados pelo Estado naquele 15 de julho, vindo da agência ´´Havas“, dizendo que ele  ´´desenvolve actuação digna de registro“. Não é o que diria Fausto, o ´´Maravilha Negra“, quando chegou ao Brasil. Fausto também era citado naquele telegrama da ´´Havas“ : No quadro brasileiro, as linhas da defesa mostran-se indecisas e fracas, exceptuando-se o centro médio, Fausto, que actuou optimamente“. A imprensa que cobriu a Copa de 30 o colocou entre os melhores jogadores da competição, o que fez dele o primeiro brasileiro a etrar em uma seleção do mundo.
  Foi em 1926 que Fausto, aquele preto magro e alto, bom de bola e goleador, apareceu no time do Bangu, no Rio. E se era bom de bola, era bom também de cachaça, diz o jornalista e escritor João Máximo, no Gigantes do Futebol Brasileiro, que ele era sempre visto ´´fazendo ponto nos mais diferentes cantos da cidade, num circo de subúrbio, numa gafieira do Centro, num bar de Vila isabel, numa esquina de Aldeia Campista, onde que que houvesse pinga, violão e sereno“. Só não disse, pelo menos em palavras, que essa vivência dera a ele também qualidades de bom observador.
  A bordo do transatlântico Conte Verde, que trouxe da Europa as delegações da França, Bélgica e da Romênia para a Copa do Uruguai, e que parou no Rio para pegar a delegação brasileira, e em Santos, para que Araken embarcasse, Fausto  conversava com Johnson, massagista da da equipe do Brasil:
   – Perder não é feio não, Johnson. Feio é ter medo. Olha, Johnson eu já estou ficando desconfiado de que a  nossa turma é meio frouxa.Acho até que não é de frio que alguns tremem .
   Fausto encontrou consagração na Copa de 30. Na volta ao Brasil apelidado de ´´Maravilha Negra“, viu alguns companheiros que que se queixavam das dificuldades que enfrentaram no Uruguai e diziam que , talvez, elas tivessem causado o seu fracasso. Para Araken, o problema havia sido o frio do sul; Nilo, atacante do Botafogo, dizia que a comida foi muito ruim; Teófilo, do São Cristóvão, culpou a falta de conjunto do time, e Poly, atacante do atacante do Americano de Campos, reclamou da violência dos iugoslavos.
  Então, em entrevista ao A noite, a 18 de julho, Fausto colocava o dedo na ferida : Araken tinha jogo de bailarina, Nilo fugia da bola, Poly tinha medo da própria sombra, e Teófilo nem se aproximava da área adversária. Foi um rebuliço, mas ninguém respondeu.
  – Houve uns momentos em que pensei em ir ajudar o Prego, lá na frente – disse também Fausto. – Mas como sou preto, se eles fizessem mais um gol iam dizer que o culpado era eu.
BRASIL 1  X 2 IUGOSLÁVIA
DATA: 14/7
LOCAL : ESTÁDIO DO Pq. CENTRAL
ESPECTADORES : 5.000
BRASIL : JOEL; BRILHANTE E ITÁLIA; HERMÓGENES, FAUSTO E FERNANDO; POLY, NILO, ARAKEN , PREGUINHO E TEÓFILO
TÉCNICO : PÍNDARO DE CARVALHO
GOL : NILO
IUGOSLÁVIA : JAKSIC; IVKOVIC E MIHAJLOVIC; ARSENIJEVIC, STEFANOVIC E DJOKIC; TIRNANIC, MARJANOVIC, BEK, VUJADINOVIC E SEKULIC
TÉCNICO: BOSKO SIMONOVIC
GOLS: TIRNANIC E BEK
ÁRBITRO: CLÁUDIO TEJADA (URUGUAI)
BRASIL 4 X 0 BOLÍVIA
 
DATA : 20/7
LOCAL : ESTÁDIO CENTENÁRIO
ESPECTADORES : 3.200
BRASIL: VELLOSO; ZÉ LUIS E ITÁLIA; HERMÓGENES, FAUSUTO E FERNANDO; BENEDICTO, RUSSSINHO, CARVALHO LEITE, PREGUINHO E MODERATO
TÉCNICO: PÍNDARO DE CARVALHO
GOLS : MODERATO (2) E PREGUINHO (2)
BOLÍVIA: BERMUDEZ; DURANDAL E CHAVARRÍA, SAINZ, LARA E BALDERRAMA; ORTIZ, BUSTAMANTE, MÉNDEZ, ALBORTA E FERNÁNDEZ
TÉCNICO : NÃO HÁ REGISTRO
ÁRBITRO : GEORGE BALWAY

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