TV aos 60 anos: Visibilidade e poder no Brasil

Flávio PORCELLO1

Débora Lapa GADRET2

RESUMO

Na ocasião em que a televisão brasileira completa sessenta anos, este artigo busca compreender a construção da visibilidade dos atores políticos através do telejornalismo a partir das relações entre as emissoras e o poder político. Propõe-se um acompanhamento crítico da mídia, com ênfase nas seis décadas de história da televisão e em seus conteúdos noticiosos, por sua centralidade na sociedade do país.

PALAVRAS-CHAVE: telejornalismo; visibilidade; poder.

Apresentação

O objetivo deste artigo é abordar a construção da visibilidade dos atores políticos através do telejornalismo e retomar as relações entre mídia e poder político no Brasil, tendo como objeto de observação a televisão que está completando 60 anos no país. Propõe-se aproximar teoria e prática jornalísticas, contemplando a visão de mundo de quem pesquisa.

 Considera-se que, na imbricação entre jornalismo e política, há uma disputa dos atores deste último campo a fim de conquistar visibilidade possibilitada pela mídia, em especial, o telejornalismo – que permite a exposição de suas imagens (pessoais ou institucionais) a um grande público associada a uma atividade que goza de credibilidade3. Para melhor compreender essa relação, parte-se dos estudos sobre a transformação dos regimes de visibilidade política na era moderna (THOMPSON, 1998;2002) e sobre o papel do jornalismo na formação das imagens públicas políticas na atualidade (GOMES, 2004; WEBER, 2009).

Acredita-se que a conquista de visibilidade dos atores políticos e os enquadramentos sobre estes demonstram, indiretamente, a estrutura e operação das emissoras de TV públicas e privada no Brasil4 . Por isso, propõe-se um acompanhamento crítico da Mídia brasileira, com ênfase na Televisão, por tratar-se do veículo de comunicação de maior penetração entre o público consumidor de informações. A concentração se dará nas emissoras que exerciam hegemonia nos diferentes períodos históricos – portanto, TV Tupi e Rede Globo –, nos avanços tecnológicos que auxiliaram a construção de modelo narrativo de telejornalismo conhecido hoje e nos seus principais programas.

Para a realização deste trabalho, parte-se da noção de que as emissoras de Televisão do Brasil – públicas, estatais ou comerciais – já nasceram próximas ao poder político, instalado no governo federal, pelo modelo de concessão da radiodifusão. Acredita-se que as TVs desenvolveram-se ao longo dos últimos 60 anos exercendo o papel de linhas auxiliares da política. Nas seis décadas completadas no mês de setembro de 2010, concessões e favorecimentos políticos foram retribuídos sistematicamente por pelas emissoras através de espaços nos telejornais, programas de entrevistas, talk shows ou inserções em programas de entretenimento e lazer.

É relevante lembrar que o presente artigo vai procurar ainda aproximar a teoria da prática. A visão de mundo de quem pesquisa deverá refletir-se neste trabalho. E o objetivo dessa produção científica não é buscar consenso. Mas, de suscitar o debate, levantar inquietações e provocar discussões sobre a televisão e o jornalismo.

A Visibilidade Política e o Telejornalismo

Para construir a noção de visibilidade dos atores políticos na atualidade, é preciso partir da transformação da natureza do que se pode chamar de publicidade, ligada às “maneiras como as pessoas e acontecimentos são tornados visíveis a outros” (THOMPSON, 2002). A distinção entre público e privado tem origens na Grécia Clássica e no início do desenvolvimento do direito romano, porém o foco será no sentido que essa dicotomia assumiu na sociedade ocidental contemporânea.

O que é público, no sentido tomado aqui, é o que é visível ou observável, o que é desempenhado diante de espectadores, o que é aberto para que todos, ou muitos, possam ver, ouvir, ou ouvir falar a respeito. O que é privado, em contraste, é o que é escondido da vista, o que é dito ou feito em segredo ou entre um círculo restrito de pessoas. Nesse sentido, a dicotomia público-privado tem a ver com publicidade versus privacidade, com abertura versus sigilo, com visibilidade versus invisibilidade (THOMPSON, 2002, p. 64-65).

As transformações sociais que moldaram a sociedade moderna, principalmente o que tange os meios de comunicação, redefiniram as relações entre vida pública e privada e criaram novos tipos de visibilidade inexistentes anteriormente. Podemos pensar essas mudanças entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna na Europa a partir das quatro formas de poder: econômico, político, coercitivo e simbólico (THOMPSON, 1998). O poder simbólico representou fator de grande mudança social e é o que interessa neste trabalho a fim de pensar as mudanças nos regimes de visibilidade dos atores político.

A gradual fragmentação da autoridade religiosa e o declínio de seu poder político se conectam não somente às alterações no campo político, mas também à expansão dos sistemas de conhecimento e instrução e o desenvolvimento dos sistemas de impressão e dos meios de comunicação. Considerado um marco na Era Moderna, o desenvolvimento dos tipos móveis em metal fundido e da prensa por Johannes Gutenberg em torno de 1440 permitiu não apenas o crescimento do mercado de livros no século XIV, mas também o surgimento dos primeiros jornais regulares de notícias (ou corantos, como eram chamados) no século XVII. Conforme Thompson, “[…] a circulação destas formas primitivas de jornal ajudou a criar a percepção de um mundo de acontecimentos muito distantes do ambiente imediato dos indivíduos, mas que tinha alguma relevância potencial para suas vidas” (1998, p. 65).

Essa publicidade midiática, além de possibilitar uma separação dos contextos espaciais e temporais entre produção e recepção, tem como característica a limitação das possibilidades de deixas simbólicas, visto que aqueles que produzem a mensagem não conseguem aferir as reações daqueles que as recebem. Entretanto, é o seu caráter monológico (que impossibilita o diálogo entre produtor e receptor) e a sua orientação para uma gama indefinida de receptores em potencial que distinguem essa forma de interação mediada das interações em contexto de co-presença.

Esse novo regime de publicidade, possibilitado pelo desenvolvimento dos jornais e que é descolado do olhar (no sentido de ver alguma coisa em um tempo e lugar partilhados), altera também a noção de formação de imagem pública dos atores políticos. Os governantes, que eram normalmente visíveis apenas para aqueles com quem interagiam rotineiramente em um contexto face a face e que ocasionalmente apareciam para seus súditos em cerimônias nas quais era reservada certa distância, puderam utilizar-se do novo meio de comunicação como uma forma de “construir uma auto-imagem que poderia ser levada a outros em locais distantes” (THOMPSON, 2002, p. 67).

Os desenvolvimentos do telégrafo e do telefone representaram um grande avanço tecnológico para a comunicação de massa e deram maior velocidade à rede de informação numa perspectiva transnacional. Porém, foi o advento do rádio e, principalmente, da televisão em escala comercial na segunda metade do século XX que levou a publicidade dos atores políticos a novos patamares.

A pouca ou nenhuma demora com que esse meio eletrônico transmitia informação criou o que Thompson (2002) chamou de simultaneidade desespacializada, onde eventos distantes podiam ser reportados ao mesmo tempo em que ocorriam. Mas talvez a maior riqueza da televisão seja sua possibilidade de “inspirações simbólicas” que permitem a reprodução de algumas características da interação face a face. Com a sua combinação de profusão visual e deixas auditivas, estabeleceu uma nova e distinta relação entre publicidade e visibilidade. “Na era da televisão, publicidade midiática é crescentemente definida pela visibilidade no sentido restrito de visão (a capacidade de algo ser visto com os olhos), embora esse novo campo de visão seja completamente diferente do campo de visão que as pessoas têm em seus encontros cotidianos com os outros” (THOMPSON, 2002, p. 68).

No regime de publicidade permitido pela TV, as ações são visíveis a um número muito maior de indivíduos, situados em diferentes e distantes contextos, o que altera novamente as condições sob as quais os atores políticos devem se apresentar e administrar sua visibilidade. Ao mesmo tempo em que o líder se dirige a essa audiência sem lugar, criase um “novo tipo de intimidade na esfera pública”, um local onde ele pode se comunicar com diferentes sujeitos “como se fossem pessoas da família ou amigos”. Os telespectadores, apesar de não poderem escolher o ângulo de visão, podem observar de forma detalhada os gestos e falas de seus líderes, o que antes era reservado às relações íntimas dos atores políticos.

Esta sociedade que tornou cada vez mais comum aos lideres políticos revelarem aspectos de si mesmos ou de sua vida pessoal Thompson (2002) chamou de sociedade da automanifestação. Tal intimidade possibilitada pelas novas tecnologias midiáticas permite (e até exige) que os atores políticos se mostrem não apenas como lideres, mas também como seres humanos, pessoas comuns que revelam seletivamente o que antes era considerado privado.

Na verdade, nessa sociedade da automanifestação, a administração da imagem pública política tornou-se cada vez mais complexa. Visto que é na visibilidade da comunicação de massa que “os argumentos poderão adquirir maior repercussão e credibilidade” (WEBER, 2006, p. 120), a produção e o controle da imagem pública nos meios de comunicação é tarefa vital para a prática política. A mídia, em especial o jornalismo, tem a capacidade de reforçar a imagem pública política produzida e administrada pelos image makers, mas também tem o poder de construí-la de maneira totalmente dissociada ao que pretendiam o político e sua equipe. Pior, a ela é possível silenciar, o que torna árdua (mas não impossível) a tarefa de se relacionar com os eleitores, objetivo final daqueles que buscam apoio e votos (GOMES, 2004).

Sabe-se que os pactos e disputa políticas da visibilidade não dependem apenas do jornalismo e da comunicação midiática e estão em jogo também na comunicação político-partidária e na comunicação pública (WEBER, 2009). Porém é na primeira instância de visibilidade mencionada que não há decisão fechada sobre quais fatos, sujeitos ou instituições serão expostos.

É o espaço que vigia, critica e expõe ações e informações geradas por políticos, partidos e instituições do campo político. Mesmo estabelecendo pactos econômicos e ideológicos com determinadas instituições e sujeitos políticos, é nesse ambiente que prevalece a credibilidade. A instância que julga e tem o poder de propiciar visibilidade (WEBER, 2009, p. 87).

É na busca por visibilidade associada à credibilidade necessária à construção de sua imagem pública que os atores políticos irão criar e promover acontecimentos que possam tornar-se notícia nos telejornais. Assim, o telejornalismo é permanentemente visado por outros campos, em especial, o político. Afinal, apesar de o poder de governar ser atribuído ao último, não se pode negar que o jornalismo, ao construir sentidos sobre a realidade, “interfere e influencia o ato de governar ao agendar temas, requerer providências, propor soluções, criticar atitudes, sugerir alternativas, produzir imagens públicas, engendrar climas sociais, enfim – e por tudo isso – afetar, no dia-a-dia, a governabilidade” (RUBIM, 2000, p. 75).

Televisão e Política no Brasil

Como poucas vezes em sua história, o Brasil viveu nos últimos 25 anos (de 1985 a 2010) um período democrático tão duradouro que tivesse permitido a realização de cinco eleições sucessivas (seis se contabilizada a eleição do próximo mês de outubro), com escolha pelo voto direto para presidente da República. Esse registro deve ser feito de forma a reconhecer o processo político e a força das instituições democráticas que asseguram a legitimidade dos pleitos e garantem a posse dos eleitos.

No entanto, nos períodos de campanha eleitoral pelo voto direto para escolha de presidentes da República, as emissoras ainda tendem a manter uma vocação de apoio condicional às elites do Poder, como mostram pesquisas relacionadas à cobertura jornalística de eventos políticos (BUCCI, 2004; PORCELLO, 2004; NEVES, 2008). Em geral, a postura oficial das TVs apoia-se em linhas editoriais de cunho governista.

Deve-se aqui ressaltar que nestas últimas duas décadas e meia, ainda não houve dois pleitos regidos pela mesma legislação eleitoral, mostrando que o regime democrático brasileiro está em fase de consolidação, no qual tanto os atores políticos quanto os agentes de mídia – incluídos não apenas os jornalistas, como também assessores políticos – aprendem a lidar com as potencialidades dos meios de comunicação. Nas eleições presidenciais de 2010 todos os indicativos são de que o pleito irá ocorrer de forma tranquila com respeito às decisões das urnas. No entanto, as regras vigentes permitem um avanço cada vez mais significativo do uso dos recursos eletrônicos nas campanhas eleitorais. E não seria exagerado dizer que a mídia não só ajuda a eleger os governos, mas ela também faz parte dos governos que elege. Neste contexto midiático, a televisão ainda é protagonista influente no processo eleitoral, pelo regime de visibilidade que auxilia a configurar as imagens públicas dos atores políticos; e o jornalismo é parte da construção social da realidade como instituição que possui credibilidade.

Apesar dos cuidados com distribuição igualitária de tempo para cada candidato, o equilíbrio da cobertura jornalística ainda é um desafio nos noticiários e entrevistas especialmente em períodos politicamente agudos, como nas eleições presidenciais. Através da análise dos conteúdos noticiosos, pode-se perceber até agora que as emissoras assumem um lado e tem candidato escolhido e, cada uma a seu modo, faz valer a influência do prestígio e da audiência para tentar influir na decisão dos eleitores ao apresentar a notícia com determinado enquadramento político-ideológico.

A política e o jornalismo, no discurso da TV, parecem fazer parte de uma mesma unidade. A política se faz pela TV e a TV faz política, apresentando suas afinidades e preferências. Os enquadramentos que irão gerar sentidos sobre os temas políticos podem ser decodificados através de uma análise das formas, cores, sons, palavras, gestos e interpretações, entre outros recursos de áudio e vídeo utilizados para transmissão de mensagens e conteúdos. A TV profere o discurso verbal e o não-verbal em sua narrativa televisual. E tem peculiaridades próprias, com níveis discursivos diferenciados.

O desenvolvimento do modelo hegemônico de telejornalismo

A história da Televisão no Brasil começou e continua sendo marcada ao longo de seus 60 anos de existência no país com uma profunda relação com o poder político, seja ele exercido pela esfera civil ou militar. Ela surgiu, em 1950, com a inauguração da PRF-3 TV Tupi, de São Paulo, do Grupo Diários e Emissoras Associados. Foi inaugurada no período pós-guerra quando Estados Unidos, Inglaterra, França e seus aliados, vitoriosos na II Guerra Mundial, apresentaram modernos equipamentos domésticos que permitiram dinamizar a economia mundial. O rádio, símbolo da comunicação social na guerra contra o nazismo, deu lugar à televisão com suas propagandas modernas e atraentes de lavadoras elétricas, geladeiras, fogões e todo o tipo de equipamento que simbolizava o sonho da “dona-de-casa moderna” (HOBSBAWN, 1994).

O Brasil foi o quinto país no mundo e o primeiro na América Latina a implantar sistema de transmissão por TV. De 1950 a 1960, não foi possível superar a marca de dois milhões de aparelhos receptores, vendidos para a população. Em 1968, com a implantação definitiva da indústria eletroeletrônica, em face do estabelecimento do programa de crédito direto ao consumidor, as vendas começaram a aumentar. Ao final daquele ano, o número de televisores vendidos aos brasileiros já ultrapassava quatro milhões de unidades. Neste momento, a TV já era parte da equação na formação da imagem pública das instituições e dos atores políticos. Sabedores disso, o poder militar buscou controlar os enquadramentos sobre o seu regime através da censura.

Na instância da produção, em 1962 surgiu um equipamento que alterou a narrativa televisiva e permitiu dividir o que interessa e o que não interessa mostrar ao público. Trata-se do Video Tape (VT), equipamento de gravação de imagem e áudio que permite a edição de forma simples e rápida. Os primeiros equipamentos de VT foram fabricados pela norte-americana Ampex. Em 1970 houve a primeira transmissão em cores (Festa da Uva em Caxias do Sul, transmitida pela TV Difusora, de Porto Alegre, e, posteriormente os jogos da Copa do Mundo do México), mas desde 1969 o país já estava interligado por rede de transmissão via microondas.

 Para conectar o país de proporções intercontinentais em uma rede nacional de comunicação, visando impedir o “avanço das perigosas idéias comunistas”, o governo militar brasileiro investiu em tecnologia. A Embratel, Empresa Brasileira de Telecomunicações, através de investimentos oficiais destinados pelos governantes militares alinhados com os Estados Unidos e sua política de Segurança Nacional, interligou o país com sua rede de microondas. Assim surgiu o Jornal Nacional.

“O Jornal Nacional, da Rede Globo, um serviço de notícias integrando o Brasil novo, inaugura-se neste momento: imagem e som de todo o país. Dentro de instantes, para vocês, a grande escalada nacional de notícias”.5 Já superlativo nasceu o primeiro telejornal transmitido em rede nacional, no dia 1º de setembro de 1969. Além do ineditismo da transmissão para outros estados por sistema de microondas, logo o JN alcançaria o maior índice de audiência da televisão brasileira, mantendo-se atualmente como o programa do gênero mais antigo e mais assistido no país. Esses mais de 40 anos de hegemonia, porém, podem ser mais bem compreendidos através de uma breve descrição da empresa a qual pertence.

As Organizações Globo são o segundo maior grupo de mídia do país. É, entretanto, o mais importante, visto que lidera o Sistema Central de Mídia nacional através da Rede Globo, maior rede de televisão em operação no Brasil e na América Latina e 4ª maior do mundo. Suas emissoras, afiliadas e retransmissoras permitem que a sua programação seja levada a 98,44% do território nacional, atingindo 5.564 municípios e 99,50% da população (REDE GLOBO, 2010).

Esse império, entretanto, não nasceu da noite para o dia. Começou com o jornal O Globo, que Roberto Marinho herdou com o falecimento de seu pai Irineu, em 1925, mesmo ano do lançamento do diário. Já com a publicação consolidada e tendo o jornalismo como foco principal, em 1944 o empresário inaugurou a Rádio Globo do Rio de Janeiro. Passado pouco mais de uma década, em 1957, a rádio recebeu a concessão de uma estação de televisão, mas foi somente em 26 de abril de 1965 que se deu a estreia da TV Globo, Canal 4, no Rio de Janeiro. Levou mais um ano para que se formasse a Rede Globo de Televisão, através da compra da TV Paulista da Organização Vítor Costa. Logo vieram as TVs de Belo Horizonte, Recife e Brasília (MEMÓRIA GLOBO, 2004). É partir da segunda metade da década de 60, portanto, que a Rede Globo domina o setor de mídia brasileira (BUCCI, 2004).

O vertiginoso crescimento durante a ditadura não veio sem polêmicas. Não somente porque as operações de expansão e financiamento podem ter sido feitas de maneira ilegal – como a aquisição da TV Paulista e o acordo com o grupo americano Time-Life (NEVES, 2008) – mas também porque Roberto Marinho mostrou uma estreita ligação com o regime militar de março de 64 e, no projeto de integração nacional dos militares, viu sua maior oportunidade de negócio. E assim se mantém há mais de 40 anos.

Desde o início, o Jornal Nacional foi precursor em inovações tecnológicas e, em consequência disso, liderou mais de uma vez as alterações no formato do fazer jornalismo na televisão. Por ser o primeiro transmitido em rede nacional, o JN desenvolveu um modelo de noticiário que apela para os interesses das diversas praças e aprendeu rapidamente que teria que buscar no texto jornalístico uma linguagem capaz de comunicar-se com todo o Brasil. Vê-se que as primeiras décadas da televisão no Brasil foram marcadas também por uma busca de identidade.

Outras inovações auxiliaram consolidar a linguagem no telejornalismo, como a utilização de teleprompter na apresentação do noticiário, a transmissão colorida e as entradas de repórteres ao vivo. Uma das últimas iniciativas que exige grandes investimentos por parte das emissoras é também importada do modelo norte-americano. A ancoragem do telejornal fora do estúdio em acontecimentos considerados extraordinários, iniciada com os deslocamentos dos principais âncoras para a Guerra do Golfo em 1991, estabilizou-se na televisão brasileira principalmente durante os eventos esportivos, como a Copa do Mundo em 2002 e 2006.

Este evento, aliás, sempre recebeu grandes investimentos. Em 1970 a TV brasileira já pôde transmitir em cores os jogos da Copa do Mundo daquele ano no México. O presidente da República na época era o general Emílio Garrastazu Médici, gremista e flamenguista, cuja imagem os militares tentaram ligar ao tricampeonato mundial da seleção brasileira. O governo Médici foi o mais repressor dos cinco governos militares (COMBLIN, 1978).

Outras ocasiões em que a Rede Globo optou pela ancoragem fora do estúdio foram a morte do Papa João Paulo II e a eleição do Papa Bento XVI em 2005, os ataques do Primeiro Comando da Capital em São Paulo em 2006 e as chuvas no último mês de abril no Rio de Janeiro. Essas inovações tecnológicas bastante valorizadas pelas emissoras, mas ao longo dos últimos 60 anos os arquivos das TVs parecem ter guardado apenas imagens de musicais, telenovelas, jogos de futebol e corridas de automobilismo. O quadro político do passado é um quadro opaco, sem memória e nem lembranças.

A ideologia do poder dominante, por exemplo, está expressa naquilo que o Jornal Nacional exibiu aos seus telespectadores em edições apresentadas nos principais momentos da eleição de 2002, primeira vitória de Lula depois de quatro tentativas de chegar ao poder pelo voto. É oportuno lembrar que na edição de 28 de outubro daquele ano, dia seguinte à vitória, Luiz Inácio Lula da Silva, participou durante 75 minutos da transmissão do Jornal Nacional, da Globo. Sentado na bancada, ao lado dos âncoras, ele respondeu perguntas, ouviu elogios e pedidos. Em vários momentos foi chamado de “batalhador”, “carismático” e “o barbudo que não assusta mais”. E viu na tela passarem imagens que resgatavam momentos de seu passado, como protestos, manifestações, assembleias de operários e mesmo sua prisão pelo regime militar. Ou seja, a Globo tratava Lula como um herói por ter resistido à ditadura, mantido suas convicções e ter sido eleito presidente. Mas onde estava a Globo quando Lula era preso? Ou seja, o que Lula e os brasileiros viam naquela noite na tela da TV eram imagens de um passado que, nos anos 70, quando eram presente no Brasil, não passavam na Globo. É preciso questionar essa capacidade que a TV tem de montar e remontar o passado segundo as conveniências da ocasião.

Hoje, “todo mundo conhece o Jornal Nacional. Todo mundo sabe em que canal de TV ele está e a que horas começa” (BONNER, 2009, p. 11). Desde a estreia, encaixou-se na grade de programação entre duas novelas, como uma brecha de informação entre duas atrações de ficção. Um dueto afinado que reparte o horário nobre na consolidação discursiva da realidade (BUCCI, 2004) e que é o carro-chefe da rede.

Atualmente, o JN não desfruta mais dos 70% de audiência que costumava alcançar até a década de 80. Com o advento da televisão a cabo e da internet e o crescimento das emissoras concorrentes em canais abertos, conseguiu em 2009, ano de seu quadragésimo aniversário, atingir o pior índice da sua história: sua média anual ficou em 31 pontos, quase 20% a menos do que o telejornal registrava no início da década. Porém, apesar da constante queda de audiência, não perdeu a liderança no seu segmento. Nenhum outro telejornal consegue sequer a metade de sua pontuação no Ibope (FELTRIN, 2009). Isso indica que o telejornal apresentado há uma década pelo casal William Bonner e Fátima Bernardes – respectivamente editor-chefe e editora-executiva do programa – ainda goza de grande credibilidade junto ao telespectador. Seja pelo laço formado entre esses e os apresentadores (HAGEN, 2009) ou não, o público espera se informar sobre o que de mais importante aconteceu no Brasil e no mundo naquele dia.

Mudança de cenário

O telejornalismo não está sozinho na disputa pela audiência. Além de competir com outros formatos de programas que a TV exibe, há também a concorrência de outras mídias, especialmente a o jornalismo online, que conquista cada vez mais espaço através do crescimento do acesso da população brasileira às mídias digitais. Para manter uma audiência cativa, além da obrigação com pontualidade e compromisso com a qualidade da informação, o telejornal diário precisa se reinventar a cada dia. Brittos (2009) diz que o telejornal brasileiro cada vez mais agrega formatos de outros gêneros televisivos para se mostrar mais atrativo ao telespectador:

Traz entrevistas, comentários e debates construídos com o máximo de recursos visuais e de áudio para prender o telespectador. Para isso tem se utilizado da experiência da ficção e da área de entretenimento em geral. Se lembrarmos que, no início do telejornal, a atração se resumia ao locutor lendo as notícias para a câmera à frente de uma cortina, podese dizer também que a linguagem visual foi quebrando paradigmas (BRITTOS, 2009, p. 294).

Sabe-se que por trás de toda a imagem que aparece na TV está o olhar do cinegrafista, de quem está captando aquela imagem, fazendo aquela escolha naquele momento. A câmera obedece a decisão de quem a opera. Mas graças à tecnológica dessas últimas décadas o olho mecânico da câmera cada vez mostra com mais perfeição aquilo que o olho humano não consegue ver. Nos anos 60 quando chegou o Video Tape, permitindo a gravação e a reprodução de imagens, as cenas eram captadas a 30 quadros por segundo e exibidas a uma velocidade ainda mais lenta. Com os equipamentos atuais (entre eles a câmera Hi-Motion ARRI) a captura de imagens permite até 600 quadros por segundo para uma reprodução em câmera lenta de 24x. Na última Copa do Mundo da África do Sul esses equipamentos de alta definição permitiram aos telespectadores ver com os mínimos detalhes imagens de jogadas ou lances das partidas de futebol. O avanço tecnológico é inegável e constante. No entanto é insuficiente para dar a informação completa a quem assiste. Daí a importância da contextualização de imagem e som e, principalmente, a valorização do texto jornalístico qualificado. Quanto melhor e mais definida a imagem da TV mais informação de qualidade deve ser fornecida para valorizar a cena ou situação.

 Todas as transformações acima refletem em mudanças também nas características dos regimes de visibilidade dos atores políticos, provocando novas narrativas e novos enquadramentos acerca da construção da imagem destes através da televisão. Essa é a principal razão pela qual o presente tema deve ser objeto de constantes estudos e renovadas pesquisas acadêmicas.

A qualidade da informação deve ser uma busca permanente para que se alcance uma pratica jornalística de responsabilidade. O objetivo deste artigo foi abordar a visibilidade jornalística e o discurso do poder no Brasil tendo como objeto de observação a televisão que este ano está completando 60 anos no país. O propósito que esperamos tenha sido alcançado foi o de aproximar a teoria da prática, contemplando a visão de mundo de quem pesquisa. O objetivo não é buscar consenso, pelo contrário, o que se quer é levantar inquietações, provocar discussões e propor debates que levem ao amadurecimento da questão. A TV merece estudos aprofundados e acompanhamento permanente, o que deve ser feito de forma crítica e apurada, como é o papel da pesquisa científica.

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1- Professor Adjunto do Departamento de Comunicação da UFRGS, coordenador da Rede Internacional de Pesquisadores em Telejornalismo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor)

2- Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Fabico-UFRGS, e-mail: [email protected]

3- Um estudo quantitativo realizado em março deste ano com pessoas acima de 18 anos em países da Europa, no Brasil, nos EUA, na Colômbia e na Índia auferiu que 76% dos brasileiros confiam nos jornalistas. A média em todas as localidades ficou em 41% (Fonte: GFK).

4- Lembramos que as notícias e seus enquadramentos dependem dos aspectos manifestos dos acontecimentos, de narrativas que orientam os jornalistas, dos valores-notícia, das rotinas que determinam o seu trabalho e de suas relações com as fontes de informação. Sem ignorar esses aspectos, ressaltamos que iremos nos focar aqui no sistema organizacional que orienta a construção da notícia.

5- Abertura da primeira edição do Jornal Nacional, lida por Hilton Gomes e Cid Moreira, a primeira dupla de apresentadores (MEMÓRIA GLOBO, 2004, p. 24).

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