Uma noite tão cheia de graça…

Pelé levou à loucura o Maracanã, ao fazer o gol mil de sua assombrosa carreira
Há quase quarenta anos, eu escrevia a crônica abaixo, então publicada no “Jornal do Brasil” e, mais tarde, reproduzida no meu livro “Bola na Rede”. Creio que seja esse um bom momento para recordar a noite histórica em que Pelé marcava o milésimo gol de sua prodigiosa carreira.
Afinal, outro monstro sagrado do futebol brasileiro, o inafável Romário, está vivendo, por esses dias, uma grande aventura, semelhante à do nosso rei do futebol.
Então, ada mais oportuno do que relembrar como se passou, pelo menos a meus olhos, aquele momento lendário.
“Um amigo me telefona, cedinho, para insistir na reação do primeiro momento: gostaria de ver Pelé fazer o milésimo gol, mas preferia que não fosse de pênalti porque, ‘de pênalti, não teve muita graça.’ “
“Assim também chegara a pensar o próprio Pelé, antes de ver a bola morrer (ou nascer) no fundo da rede. Tanto que ameaçou refugar, coerente com afirmações anteriores de que se lhe tocasse encerrar o balanço com gol de pênalti, passaria a bola a outro jogador.”
“E, no entanto, na hora de fazer o gol-símbolo de sua vida, Pelé não poderia merecer do futebol distinção maior: o estádio imenso, o silêncio musical da multidão, a corte de parceiros e rivais em torno dele, imóveis; a bola, proibida de todos, a seus pés – e uma eternidade para chutá-la, pois só aí a lei do futebol oferece o privilégio de estender indefinidamente o jogo até que se cumpra todo o ritual do pênalti.”
“O gol de ação, o gol de movimento – esse Pelé já fez 999 vezes, chutando bolas suadas, bolas armadas, bolas sangrentas, bolas mortas, bolas vivas, divididas”
Na hora de fazer o gol-símbolo de sua vida, Pelé não poderia merecer do futebol distinção maior
 
“O gol dos deuses, bola no peito, três dribles verticais, um chata mortal – Pelé já fez tantos.”
“O gol dos meninos, quantos Pelé já não fez? driblando defesas inteiras?”
“O gol dos espertos? Pelé já fez: um dia, num córner, enlaçou o braço no braço de um beque e gritou, em desespero: “Está me agarrando!” O árbitro marcou pênalti, Pelé chutou e fez o gol.
“O gol dos sonsos,  Pelé também já fez, capengando, de mentira, na meia-lua, e logo surgindo na pequena área, encontro marcado com a bola, antes do córner, antes do jogo, muito antes de tudo e de todos.”
“Faltava-lhe, porém, fazer o gol feito, que é o gol da multidão, o gol de todos os testemunhos, o gol que ninguém no estádio, por descuido ou infortúnio, deixasse de ver, florescendo de seus pés, como já disse, tão amados.”
“Era preciso, sim, o cerimonial de um pênalti para nos compensar de tantos gols bonitos que ele fez nesse milhar e que nos escaparam, na vertigem da ação coletiva”
“Abençoado é o pênalti que não castiga, mas gratifica: quando Pelé, no fundo da rede, beijou mil vezes a bola do seu gol-símbolo, o estádio viveu um instante de libertação – e Pelé, mais um de consagração. Éramos ali, uma doce multidão de crianças, reencontrando a bola da nossa infância.”
“Que eu saiba, jamais, a multidão se entregou tanto à exaltação de um gol, antes, pesadelo, hoje, realizado o sonho de Pelé – e de todos nós.”
“Fiquemos, pois, com a graça de uma noite de consagração…”
“Que Pelé guarde, eternamente, no fundo do coração, a bola que floresceu de seus louvados pés, no instante do gol-sacramento”

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