A importância histórica da obra Casa-Grande e Senzala

Publicado em 31 de Maio de 2009 por Elizangela MG

O presente artigo tem o objetivo de demonstrar a importância historiográfica de Gilberto Freyre e de sua obra “Casa-Grande e Senzala”. No entanto, é necessário que a princípio descrevamos sua biografia, para que melhor o compreendamos, já que, o homem é fruto de seu meio social.

Gilberto de Mello Freyre (15/03/1900 a 18/07/1987), sociólogo e escritor brasileiro, nasceu e faleceu no Recife, Pernambuco. Era filho do Dr. Alfredo Freyre – educador, Juiz de Direito e catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife – e Francisca de Mello Freyre. Ainda criança, em 1909, com a morte de sua avó materna passa uma temporada no engenho São Severino do Ramo, pertencente a seus parentes. São as primeiras experiências rurais de menino de engenho.

Em 1917, concluiu o curso de Bacharel em Ciências e Letras do Colégio Americano Gilreath. Iniciando também, o estudo da língua grega. Já em 1918, segue para os Estados Unidos para estudar na Universidade de Baylor, onde concluiu o curso de Bacharel em Artes. Todavia, foi no ano de 1921 que iniciou, na Universidade de Colúmbia (Nova Iorque), os estudos de Ciências Políticas (em específico a Economia); Ciências Sociais (em específico a Antropologia Cultural e a História Social); Ciências Jurídicas (em específico a Diplomacia e o Direito Internacional). Através desses estudos, Freyre recebeu influências de pensadores que marcaram o caráter de suas obras futuras. Dentre as diversas influências, podemos elucidar as do sociólogo Giddings; do jurista Munro; do economista Seligman; do historiador social Carlton Hayes; e, principalmente, do antropólogo Franz Boas. Da qual, Freyre pôde compreender e elaborar a diferença entre raça e cultura, separando herança cultural de herança étnica.

A partir dessa diferenciação é que, ocorre o marco nas análises da cultura brasileira notadamente, através da obra “Casa-Grande e Senzala” datada de 1933. Entretanto, é importante ressaltar que, o “gérmen” de Casa-Grande e Senzala foi sua própria tese universitária, escrita e editada como livro em 1922, na qual, é intitulada de “Vida Social no Brasil nos meados do século XIX”. Já nessa obra, o autor se utilizou de fontes orais de avós e de pessoas idosas. Além da perspectiva de análise voltada

…no foco de imagens apresentadas como típicas de um tempo social, deixando-se de dar exclusiva atenção ao homem dominador para distribuir-se essa atenção por dominados significativos para a compreensão de um tempo social ou para interpretação de uma sociedade ou de uma cultura, por mais patriarcal, por mais masculina ou por mais escravocrática em suas predominâncias (FREYRE, 1977, p.32).

É perceptível que, Casa-Grande e Senzala foi o aperfeiçoamento de uma abordagem um tanto quanto inovadora e singular. Já que, misturou antropologia; sociologia; história; e literatura para reconstruir todas as vivências do senhor e do escravo, no seio da sociedade colonial brasileira do século XIX. O intuito de Freyre era “… demonstrar que houve uma solução brasileira para um acordo entre diferentes tipos de vivências, diferentes padrões culturais. No Brasil, teria havido um bem-sucedido ajustamento para um profundo desajustamento. Freyre é um autor criativo, sensível ao cheiro, à cor, ao ruído, ao amor e ao ódio, ao riso e ao choro”. (REIS, 2000, p.52).

Houve então, por parte de Freyre e a partir dele, uma valorização da mestiçagem brasileira. Pelo fato da mesma ser concebida sob o aspecto cultural. O fator raça, deixa de ser o caráter determinante sobre a evolução biológica do mestiço, do negro. A ênfase recai sobre o aspecto cultural e, consequentemente, sobre as influências sociais que os agentes sociais recebem, a partir de suas vivências em determinada sociedade. Tal perspectiva de análise, foi consolidada através das influências que Freyre recebeu de Boas, conforme explicita Reis (2002):

…a sua formação americana é só indiretamente alemã através da presença de Franz Boas. Este dava ênfase ao conceito de cultura, combatendo o evolucionismo biológico, racial. Boas não acreditava que a pobreza estaria reservada aos mestiços ditos ‘biologicamente inferiores’. A raça não seria determinante sobre o meio cultural. Grupos de uma mesma raça respondem diferentemente aos desafios geográficos, econômicos e sociais e políticos, criando culturas distintas (…). Boas negava o determinismo, o evolucionismo, o cientificismo e se aproximava do historicismo alemão com sua ênfase na cultura e na relatividade dos valores (LIMA apud REIS, 2000, p.53).

Outro aspecto determinante, para a importância historiográfica da obra de Freyre, condiz tanto, com a inovação no uso das fontes quanto, nas análises de diversas temáticas. Como exemplo, da infância, da velhice, da festa, da família, do sexo, do amor, da comida, da morte, da natureza e da paisagem. Estas por sua vez, necessitavam de diversas fontes como, anúncios de jornais, correspondências, diários, escritos de viajantes estrangeiros, livros de receita, fotografias, cantigas de roda e entrevista oral. Tais análises, resgatavam as práticas, as crenças e os costumes das três raças, que se entrecruzaram e, constituíram o povo brasileiro: portugueses, africanos e indígenas. Sendo que, o fator cultural foi fundamental para que houvesse equilíbrio e reciprocidade, entre esses povos. “Entretanto, a abordagem de Freyre valoriza sobretudo o aporte cultural africano, destacando-lhe o caráter positivo e mostrando que tudo quanto se lhe imputou como traço negativo dizia respeito antes à escravidão” (SOUZA, ANO, p.21).

Para Freyre, o negro foi a figura principal para que a colonização portuguesa desse certo. Logo, sua obra é um relógio da colonização portuguesa. Reelogio porque, Varnhagen também era a favor da colonização portuguesa, porém não apoiava a presença do negro. Haja vista que, a mesma, acarretaria a miscigenação e, consequentemente, o desprestigio da raça brasileira, que então deveria ser branca. Nesse sentido, a abordagem de Varnhagen difere da de Freyre pois, esse via com bons olhos tanto a colonização portuguesa, quanto o negro.

A partir da década de 80, quando iniciaram as discussões sobre cidadania. Foram diversas as críticas que a obra de Freyre recebeu, por de fato não perceber: as reais condições sociais vivenciadas pelos negros; a distância social entre Casa-Grande e Senzala, ao invés, de aproximação, de equilíbrio ou reciprocidade, havia um acentuado conflito, ou melhor, lutas de classes; a ausência de liberdade por parte dos escravos; e ainda na contemporaneidade a ausência de cidadania, bem como, o acentuado preconceito social. Enfim, por amenizar a real condição, enquanto coisa ou objeto, do negro. E romantizar tais vivências.

Dentre os críticos, podemos citar Renato Ortiz (2003) na qual percebe que, no início do século XX, a concepção sobre o negro como entrave ao processo civilizatório é mudada. Tem-se outro olhar em relação ao negro: é o olhar sob a ideia de cultura. Mesmo porque, naquele contexto o Brasil passava por grandes mudanças tanto, no âmbito das produções intelectuais, quanto no âmbito da industrialização e da urbanização, que transformaram as relações sociais.

Com a Revolução de 30 as mudanças que vinham ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro deste quadro, as teorias raciológicas tornam-se obsoletas, era necessário superá-las, pois a realidade social impunha um outro tipo de interpretação do Brasil. Ao meu ver, o trabalho de Gilberto Freyre vem atender a esta ‘demanda social’. (ORTIZ, 2003, p.40).

Sendo assim, a obra Casa-Grande e Senzala ao trocar o termo raça por cultura, propicia a continuidade das teses e concepções dos pensadores que o antecedeu. Além, de consagrar o mestiço como figura suprema para a nação brasileira, conforme afirma Ortiz:

Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada (…). O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual (…). A ambiguidade da identidade do Ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX não podia resistir mais tempo. Ela havia se tornado incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país. Basta lembrarmos que nos anos procura-se transformar radicalmente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como, ‘preguiça’, ‘indolência’, consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma ideologia do trabalho. (ORTIZ, 2003, p.41-42).

A consolidação e difusão do mito das três raças possibilita, aos diversos grupos de cor, a assimilação das relações sociais que são por eles vivenciadas, segundo Ortiz. Para o autor esse é um fator negativo, no que tange aos movimentos negros. Já que, as manifestações de cor ao serem apropriadas pela sociedade, com a finalidade de se tornarem discurso do nacional, perdem suas especificidades. Como exemplo, tem-se o samba que por ser considerado símbolo nacional, perdeu seu caráter de música negra. Logo, o mito das três raças encobre os conflitos racionais visto que, possibilita que todos se reconheçam como nacionais.

Enfim, é indiscutível a importância historiográfica da obra de Freyre, na medida em que, inovou nas análises e na forma de concebermos a sociedade colonial. Bem como, ainda nos possibilita que reflitamos criticamente muitas de suas construções. E refutar ideias e ideologias, implica em recontar a História. Buscar novos paradigmas e visões; abordagens e fontes afim de, minimamente reconstruirmos determinada sociedade. Mas, sempre a partir de novas problemáticas e dúvidas, já que, essa é a função enriquecedora da história: indagar, duvidar os acontecimentos históricos. Ao invés, de formular dados e respostas concretas sobre a efemeridade das vivências humanas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

-FREYRE, Gilberto. Prefácio à Segunda Edição em Língua Portuguesa. In: Vida Social no Brasil nos meados do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1977,26-37.

-FRYRE, Gilberto. Prefácio à Primeira Edição. In: Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2004, p.29-54.

-Texto: SOUZA, Laura de Mello e. Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial. p.17-38.

-ORTIZ, Renato. Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional. In: Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003, p.13-44.

-REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: De Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

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